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Um dia feliz.

O dia era daqueles em que o medo da chuva fazia com que ao lado de cada pessoa surgisse um adereço, mas ao mesmo tempo logo fazia brotar o arrependo da roupa mais grossa. Nublado e abafado parecia uma senhora de idade com prisão de ventre. Depois de quatro quilômetros de caminhada e de uma pequena carreira ele conseguiu um lugar no ônibus. O vento que espera entrar pela janela teimava preguiçoso a não entrar enquanto o engarrafamento não passasse. Os ouvidos preenchidos pela música que brotava do fone o transportavam para dali há horas. Talvez estivesse com ela. Sorriu. Aqueles sorrisos que não tentam se esconder, que abrem a boca e desencostam os dentes. Era um dia feliz. Quem sabe já já estaria com ela.

Ouse saber (?!)

"sapere aude" dizia a tatuagem no pescoço da moça a sua frente na fila do mercantil. Ouse saber ela queria dizer... Esquecia ela que o saber é irreversível, e, às vezes, só às vezes, ele achava que a ignorância podia ser uma benção. O conhecimento é inquietador. Se não é possível alimenta-lo e acalma-lo, assim como o lobo, ele ronda... Cerca... Às vezes mostra os dentes... E um dia, ele sempre morde. Talvez não saber seja uma benção, como diziam os medievais. A bendita ignorância... Mas ao mesmo tempo, não saber, não significa que não exista. "Cuidado meu bem há perigo na esquina"... E do outro lado da curva não existe uma reta.

"Aproveite o momento"...

A tatuagem feita há menos de uma semana ainda estava com a cor vem viva e a pele ao redor um pouquinho avermelhada. Vinha cuidando muito bem dela, creme de cicatrização e hidratante. Evitava poeira e sol por seis dias, mas agora era a hora. Com um biquininho vermelho de laço na lateral foi até a beira da água. Estrategicamente levantou o cabelo com as duas mãos pela parte de trás, mas deixando um rabo de cavalo grandão adornando-a, assim como os penachos adornavam os grande generais romanos. A amiga, devidamente posicionada de modo a pegar, com o iPhone X refém comprado, o mar, a areia, um pouco do brilho do sol que vinha da direita, mas principalmente a lateral das costelas dela evidenciando o texto: "aproveite o momento". Foram 26 fotos até chegar na que Boa considerou perfeita. Agora, com o coração palpitando, postou no Instagram. Avisou nos histories e no status do WhatsApp: tem foto nova, curte lá.

O rio.

Nunca se sentiu tão pequeno. O mundo era gigante. Ela era imensa. O desejo que vem de fora parece arrebatador. A sede de viver experiências soou muito mais alto do que qualquer projeto de um futuro que se anuncia bonito mas distante... Sabia-se forte, mas ela o deixará menor que um grão. Escolhas foram feitas. Escolhas foram desfeitas. O mundo nunca mais seria o mesmo. Nunca mais saberia como é a sensação de estar seco. Mergulhou no rio e mesmo enxuto, sempre terá se molhado.

Voo para a gaiola.

Eram os atestados de sua autonomia. Alegrara-se com cada um que chegava. Teve um tempo em que eles simbolizavam uma independência que tinha procurado por um bom tempo. Enquanto adolescente não contava às vezes que ouvira: se quer ser livre, pague suas contas. O primeiro boleto parecia uma carta de alforria. Eles seguiram vindo. Às vezes maiores, às vezes menores. Por vezes ficava feliz com o que lia, por trás dos números estavam a viagem, o carro, as alianças, o cimento... Logo viraram o arroz, o macarrão, o sabão em pó,... Não muito depois, as fraldas, o leite... Passava a temer a chegada de cada um deles. Paulatinamente foi se dando conta que a cada um que chegava, fechava ao redor dele mais uma barra da gaiola. Os números o impediam do voar. A autonomia era asfixiante.

Direct mensager.

Hoje eu acordei e meu primeiro pensamento foi você... Você me pergunta se está tudo bem, e com os olhos marejados e o nariz avermelhado eu lhe digo que sim com a cabeça, mas você sabe a verdade... Não está. Está tudo uma bagunça, mesmo parecendo estar tudo em ordem. Sinto-me só, porque no meio da multidão não tem você. No movimento automático de pegar o celular procurando por histórias que me façam passar o tempo, falta o seu sorriso. Sinto saudades... Saudade de tanta coisa, de tanto sentimento, de tanto eu. De tanto eu como você. O mais louco de tudo é ter saudade de um passado que nunca passou de nada além de uma projeção de um futuro que poderia ter sido mas nunca foi. Mesmo assim, foi mais verdadeiro que a maioria das verdades, que a maioria dos corpos, dos abraços, dos beijos. Nunca fomos, mas você sempre foi. Parou por dois segundos... Pensou um pouco. O polegar dançou levemente pra cima e pra baixo mas acabou encontrando a seta apontando para a esquerda com um x dentro

Senhor maquinista.

Houve um tempo em que o incomodava tratar alguém com educação e ouvir: mas aqui não tem nenhuma senhora, ou, senhora da no céu meu filho. Achava que essas pessoas não conheciam as regras básicas de educação... Ora bolas, sua mãe lhe repetia a exaustão, sempre chame pessoas mais velhas de senhor ou senhora. Havia nele uma raiz de subserviência internalizada. Agora, falava senhor e senhora para aqueles que estavam ao seu derredor e continuava a ouvir negativas, não mais por quem tinha medo de denotar idade ou que mostravam humildade, ele havia envelhecido e praticamente todos ao seu redor eram mais jovens, menos graduados ou estavam em cargos que lhe eram inferiores. Nascera para um mundo onde ele seria apenas mais um dentro da máquina, não sabia ainda como viver sendo o maquinista.