O ventre gelado. A noite de chamas.

O frio era extenuante. A breve caminhada entre as casas cansou-a como se tivesse passado metade de um dia inteiro nos campos de trigo. Mas a causa era justa. Precisava atender ao chamado de Helga. A velha amiga há muito tentava ter uma criança. Frida já fizera de tudo que sabia para ajudá-la, ervas, chás, banhos, até mesmo receitara a frauda suja de um bebê recém nascido amarrada ao ventre para despertar as entranhas da amiga, e nada adiantara. 
Era triste ver a amiga padecendo de tamanha expectativa, ainda mais com toda a cobrança da família de Matheus, há tanto tempo senhores de vastas historias de guerreiros poderosos. Sentar a mesa com algum dos Hammult era a certeza de que alguma história sobre um dos seus parentes que estaria na mesa de Odin esperando pelo Ragnarok... Apesar de que, ultimamente alguns haviam cessado esses assuntos e até repreendido de forma condenatória qualquer menção ao nome dos deuses por causa de um tal deus carpinteiro, ou deus pregado, ou algo assim. 
Não terminou nem a primeira batida e logo Helga coloca-a para dentro. 
A casa estava mais sóbria do que nunca. 
- Eu descobri uma forma de engravidar. - falou com a voz carregada.
- Que ótimo amiga, mas... como posso ajudar?
- Preciso de você. Preciso que confie em mim.
- Tudo bem. Diga o que tenho que fazer. 
- Primeiro, preciso que você prepare a invocação dos espíritos...
- Mas isso já fizemos algumas tantas vezes. (Cortou Frida com uma voz de decepção)
- Faça! Você precisa fazer. (Respondeu de forma ríspida a jovem de ancas curtas e cabelos acobreados.)
- Tudo bem... 
Lentamente Frida preparou a sala e todos os ingredientes que trouxera consigo na bolsinha a tiracolo.
- Agora preciso que você ponha essa touca e invoque os ventos minha amiga.
- Touca... pra que... você tem cert... (o olhar de Helga era um misto de medo, apreensão, esperança e raiva. Foi o suficiente para que Frida consentisse) Tudo bem.
No milésimo de segundo entre o movimento das mãos e a escuridão plena Frida percebeu o vulto de um homem que segurava uma estatua de uma mulher gravida recoberta de panos na mão. Seriam os espíritos? Se fossem, essa era a primeira vez que....

Aaaa. Mas o que? Aaaa Não... Não... 
Sentiu o sangue correr-lhe pela testa, esgueirar-se pela bochecha, até pousar na boca. Provou do seu próprio interior. Teve medo.

Os olhos abriram lentamente e demoraram para distinguir em meio as formas humanoides ao seu redor e ao som da musica lenta e melodiosa que entoavam. Tentou mexer-se, estava amarrada. Ao seu redor acusações. À suas costas um mastro onde amarrara-lhe os braços. Aos seus pés palhas e galhos secos.
Do meio da multidão, destacaram-se duas figuras. Um homem tonsurado que se dirigiu ao povo ao redor. Ao seu lado, Helga. Aproximou-se de Frida, com o olhar marejado de lágrimas. 
- Você precisa morrer para que minha criança possa nascer.
- O que você fez?
-Você precisa morrer, ele me disse... 
- Você me sacrifica por seu filho?
- Ele me prometeu que se você for para as chamas. Maria vai limpar meu ventre manchado pela sua bruxaria. 
- Helga... você não entende... Nós mulheres temos que estar juntas. 
Frida quis gritar... mas não podia dar-lhes o gosto. As chamas lamberam-lhe os pés e lentamente foram tomando sua carne. Parecia que arrancavam-lhe a pele com uma faca cega. 
A ultima visão que teve foi da turba se jogando sobre Helga, que chorava copiosamente aos seus pés, arrependida de sua ação. 
Desesperada Helga tentou resistir, tentou argumentar, mas a voz era muito frágil diante da fúria daquela dezena de pessoas que cantavam e pulavam quase que em transe.
- Se seu arrependimento for verdadeiro, as chamas irão lhe recusar, pois disse o senhor que todos devemos ser provados como o ouro no crisol. 
Com essas palavras o homem tonsurado a empurrou sobre a fogueira. 
       

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