A dança
Veio caminhando lentamente, como que a revisar
cada um dos passos na memória. Mas a mente estava limpa, sem pudores ou medos.
Usava uma camiseta verde escura por cima de um
top acinzentando que combinava com a calça de moletom colada também em tom de
cinza.
O cabelo escorrido atrás das costas ainda molhado
escondia o tom aloreado natural. Sob as suas gotas os milhares de prismas se
escondem, sob sua camada escura a vida pulula nos açudes e nos mares e também
sob aqueles fios.
Colocou a sacola de viagem onde guardava a pouca
bagagem que tinha no chão. Um chão que parecia se misturar ao infinito em uma mar de grama verde e milhões de margaridas amarelas cheias que olhavam-lhe diretamente, como que a captar a luz que emanava.
Seus dedos podiam sentir a grama fazendo-lhe
cócegas nos pés. Um pouco de terra preta ficou presa entre as dobrinhas dos
dedos. Não sentiu nojo, não se sentiu suja. Sentiu-se viva!
E tão viva que sobre aquela grama, sentindo o
beijo do sol sobre sua pele alva começou a balançar sozinha.
Os movimentos fluidos foram ficando cada vez
maiores e mais intensos, naturalmente seu corpo foi se transformando em um
instrumento. Em escopo da alegria.
Bem ao longe podia ouvir os clarinetes e cavacos de "A Sunday Smile".
Seu corpo movia-se cada vez mais alto, os pés ágeis
subiam e desciam em cadências ritmadas e espontâneas.
Não ensaiara nenhum daqueles passos, só os vivia,
os permitia fluir usando de sua carne para fazerem-se matéria.
A musica ficou cada vez mais alta.
Dos céus surgiram aplausos em forma de gotas.
Ainda de olhos fechados ela sentiu o peito
transbordando.
Mesmo que os olhos não pudessem nem quisessem
ver, uma mancha vermelha em sangue escorria-lhe do lado esquerdo.
Em meio a moinhos de braço, giros chainé, saltos
e rotações, o peito transbordante escorria gotas escarlates que caiam lentamente sobre o chão produzindo um desenho magnífico e sensorial na
grama que se curvava aos seus pés como que reverenciando a beleza dos
movimentos e da vida que lhe explodia.
Dançou com força, como se não houvesse amanhã, como se o mundo estivesse por um fio. Como se nada existisse e ao mesmo tempo como se a dança lhe colocasse em comunhão com o universo. Dançou!
Respirou, passou suavemente a mão pelo cabelo,
alinhou-o novamente atrás da orelha. Sentiu o pulmão enchendo-se de ar e de
milhares de cheiros que denunciavam a grama molhada e a multidão de seres que
tinha ao seu redor. Abriu lentamente os olhos. Viu o mundo. Estava frio, era
escuro, não teve medo. Sorriu.
No chão escrevera amor. Não em uma
língua de homens, não em uma língua com regras e normas, com gramática, sintaxe
ou morfologia. Dizia amor com o mais puro sentimento de entrega, luta, suor,
choro e desejo.
A roupa impecável. Nenhuma mancha.
Seu amor era demais para uma única dança.
Ainda havia outros pares, outros parceiros a
encontrar.
Dançava por necessidade e por urgência.
Dançava por que era a própria dança.
Lembro disso.... E incrivelmente, compreendo melhor que antes, leio com mais ternura.. Não sei explicar.... Lindo, muito lindo...
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