Postagens

Mostrando postagens de setembro, 2015

Dominação

Deixou a água escorrer preguiçosa pelo corpo. A pele alva já estava rosada do calor da água quente que caia em cascata.  A mão macia adornada de unhas grandes percorria o próprio corpo de forma languida. Era bela. Era desejável. Sabia disso. A qualquer momento ele ia largar o trabalho e ia correr pra ela. Como sempre ia inventar alguma desculpa sem muita graça para entrar no banheiro e perguntar se podia terminar o banho junto com ela. Já sabia no que isso ia dar. Era sempre assim. Mesmo nas outras vezes em que dormiu fora. Ele fazia uma cara de emburrado, ficava com uma tromba do tamanho do mundo. Mas no final, o desejo sempre vencia a honra. Ele sabia que ela era bela. Ele sabia que ela era desejável. Ele sabia que era sempre assim. . .. ... A pele começou a arder depois de quase uma hora debaixo da água quente. Não podia acreditar que um CD inteiro da Florence já tinha tocado e ele ainda não tinha vindo. Deixou cair o condicionador. Talvez o

Querência.

Cansado de querer, por um segundo queria deixar de lado essa querência, que de tanto ser apenas um querer já tinha caras de sofrer. Queria e sofria. Era quase um mantra, um escopo de sensações e de lição. Sidarta Gautama tinha razão. Querer é sofrer, porque quem tem nunca se contém. O pior de todos os quereres é o de parar de sofrer. O querer nunca se sacia. Muda o alvo desejado, mas nunca deixa de desejar. O desejo é a fonte de toda a dor. Por querer não ter mais, sempre tinha. Dentro da cabeça e do coração. Era um jeito triste... mas era assim que tinha. Aquele que nada quer tudo tem. Aquele que tudo quer, nunca tem nada. Ao que vive por um desejo: uma gaiola de lembranças e sonhos. Está sempre preso pelos pés e pela cabeça. Seu passado e seu projeto de futuro o engaiolam. Ao que consegue não querer. O flanar é o prêmio. Circula livre pelos corpos, pelas almas... por outras gaiolas. Querer é sofrer.

Fetichismo

Viu-se cercado pelas peças de decoração que acabaram de chegar do mercado. Para cada lado que corria os olhos via móveis: coloniais, modernistas, usados e novos. As paredes estavam repletas de quadros, faixas, e relógios... cucos, digitais e analógicos, tanto faz. Sorriu. Por entre as pálpebras semicerradas viu. Não acreditava no que estava vendo. Havia uma fresta de parede azul que ainda era visível. Inquietou-se. Tinha que mover aquele quadro de Dali... ele era do tamanho perfeito, conseguiria cobrir o espaço vazio. Esticou o braço. Não alcançou. As pernas presas entre as diversas mesas de todos os tipos diferentes de madeira. Carrara, carvalho, cambará, angelim, caxeta, cedro... Sentiu-se satisfeito pelo que tinha. Tinha bastante. Apesar de que... Aquela fresta de parede permanecia não coberta. Não era o bastante. Precisava de mais. Pegou um dos trinta celulares para ligar pro depósito. Ergueu a vista em um exercício de pensamento... - Meu Deus!!! O teto estav

De pedra em pedra...

Passou a mão sobre o rosto, a mão ainda molhada da água da torneira borrou a maquiagem por debaixo dos olhos. Desgrenhou os cabelos com cuidado, não podiam ficar demais, mas tinham que estar fora de ordem. Colocou a bolsa ao redor da boca e gritou com força. Uma, duas, três vezes. A voz falhou um pouco... perfeito. Estava pronta. O queixo sempre ereto deu lugar as costas envergadas e um olhar perdido. A imagem era perfeita. Carla entrou na sala. Eles eram muitos, mas ela era ela. Cada um falou. Todos confirmaram a mesma história. Todos os dias Carla ia ao trabalho. Quando chegava na porta podia ver lá em baixo o carro da coordenadora de vendas. Todos os dias ela pegava uma brita do montinho que os pedreiros deixavam perto do portão e arremessava no vidro. Todos os dias ao longo de mais de nove meses ela fez isso. - Eu não fiz. Mas todos diziam que ela fez. - Eu não lembro de ter feito. Buscou algum olhar de apoio no meio da sala... encontrou um ou dois qu

Morreu...

Não era seu primeiro dia no emprego. Não estava com casamento marcado. Não era um caso de superação legal pra passar no Jornal Nacional. Não era parente de ninguém famoso. Mas era alguém. Respirava como todo mundo. Piscava os olhos constantemente. Até usava fones de ouvidos no ônibus. Não usa mais. Levou um tiro na cabeça atravessando a rua. Não sei se ia pra casa, se vinha do trabalho, se estava apressado ou andando calmamente. Só sei que morreu. Nunca soube, nem saberei quais ideias ele tinha. Mas vi o que tinha dentro da sua cabeça. Acho que o tiro não era pra ele. Mas acabou achando-o mesmo assim. Morreu... atrapalhou o trânsito... parecia até trecho de música do Chico Buarque... Mas não era. Era só mais uma morte. Como tantas outras que se repetem todos os dias. Só mais um número nas estatísticas de nossa guerra cotidiana.