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Mostrando postagens de 2018

"Aproveite o momento"...

A tatuagem feita há menos de uma semana ainda estava com a cor vem viva e a pele ao redor um pouquinho avermelhada. Vinha cuidando muito bem dela, creme de cicatrização e hidratante. Evitava poeira e sol por seis dias, mas agora era a hora. Com um biquininho vermelho de laço na lateral foi até a beira da água. Estrategicamente levantou o cabelo com as duas mãos pela parte de trás, mas deixando um rabo de cavalo grandão adornando-a, assim como os penachos adornavam os grande generais romanos. A amiga, devidamente posicionada de modo a pegar, com o iPhone X refém comprado, o mar, a areia, um pouco do brilho do sol que vinha da direita, mas principalmente a lateral das costelas dela evidenciando o texto: "aproveite o momento". Foram 26 fotos até chegar na que Boa considerou perfeita. Agora, com o coração palpitando, postou no Instagram. Avisou nos histories e no status do WhatsApp: tem foto nova, curte lá.

O rio.

Nunca se sentiu tão pequeno. O mundo era gigante. Ela era imensa. O desejo que vem de fora parece arrebatador. A sede de viver experiências soou muito mais alto do que qualquer projeto de um futuro que se anuncia bonito mas distante... Sabia-se forte, mas ela o deixará menor que um grão. Escolhas foram feitas. Escolhas foram desfeitas. O mundo nunca mais seria o mesmo. Nunca mais saberia como é a sensação de estar seco. Mergulhou no rio e mesmo enxuto, sempre terá se molhado.

Voo para a gaiola.

Eram os atestados de sua autonomia. Alegrara-se com cada um que chegava. Teve um tempo em que eles simbolizavam uma independência que tinha procurado por um bom tempo. Enquanto adolescente não contava às vezes que ouvira: se quer ser livre, pague suas contas. O primeiro boleto parecia uma carta de alforria. Eles seguiram vindo. Às vezes maiores, às vezes menores. Por vezes ficava feliz com o que lia, por trás dos números estavam a viagem, o carro, as alianças, o cimento... Logo viraram o arroz, o macarrão, o sabão em pó,... Não muito depois, as fraldas, o leite... Passava a temer a chegada de cada um deles. Paulatinamente foi se dando conta que a cada um que chegava, fechava ao redor dele mais uma barra da gaiola. Os números o impediam do voar. A autonomia era asfixiante.

Direct mensager.

Hoje eu acordei e meu primeiro pensamento foi você... Você me pergunta se está tudo bem, e com os olhos marejados e o nariz avermelhado eu lhe digo que sim com a cabeça, mas você sabe a verdade... Não está. Está tudo uma bagunça, mesmo parecendo estar tudo em ordem. Sinto-me só, porque no meio da multidão não tem você. No movimento automático de pegar o celular procurando por histórias que me façam passar o tempo, falta o seu sorriso. Sinto saudades... Saudade de tanta coisa, de tanto sentimento, de tanto eu. De tanto eu como você. O mais louco de tudo é ter saudade de um passado que nunca passou de nada além de uma projeção de um futuro que poderia ter sido mas nunca foi. Mesmo assim, foi mais verdadeiro que a maioria das verdades, que a maioria dos corpos, dos abraços, dos beijos. Nunca fomos, mas você sempre foi. Parou por dois segundos... Pensou um pouco. O polegar dançou levemente pra cima e pra baixo mas acabou encontrando a seta apontando para a esquerda com um x dentro

Senhor maquinista.

Houve um tempo em que o incomodava tratar alguém com educação e ouvir: mas aqui não tem nenhuma senhora, ou, senhora da no céu meu filho. Achava que essas pessoas não conheciam as regras básicas de educação... Ora bolas, sua mãe lhe repetia a exaustão, sempre chame pessoas mais velhas de senhor ou senhora. Havia nele uma raiz de subserviência internalizada. Agora, falava senhor e senhora para aqueles que estavam ao seu derredor e continuava a ouvir negativas, não mais por quem tinha medo de denotar idade ou que mostravam humildade, ele havia envelhecido e praticamente todos ao seu redor eram mais jovens, menos graduados ou estavam em cargos que lhe eram inferiores. Nascera para um mundo onde ele seria apenas mais um dentro da máquina, não sabia ainda como viver sendo o maquinista.

Transcendência mundo cão.

Passou a mão no cabelo. Embaraçado. Tufo caiu. No meio da fumaça dos carros, bom dia, levou um chute pra acordar. Tentou outro abrigo mas a vida já começava. Não, perdoe, vira a cara, tô apressado... Um rosário de desculpas decorado. Fim da manhã a barriga urgia. Senhora?! Puxou a bolsa contra o corpo e apressou o passo. Cansada da cara feia foi no seu Armando. Um boquete, um almoço. No começo o nojo dava vontade de vomitar. Agora engolia o vômito, precisa da comida na barriga. Um dia recheado de não e de medo. Pra encerrar a ladainha um cheiro na latinha. O vapor subia. Sua alma também. Transcendeu. Ascendeu aos céus. Viu Jesus, e ele mandou ela ir tomar no cu.

23 de abril.

Pediu-lhe a graça. Não buscava a vingança ou a destruição. Não lhe movia o sentimento negativo muito menos o desejo de demolir ao outro ou aos seus feitos. A catequista lhe ensinou que deveria dar a outra face ou perdoar setenta vezes sete, até tentava, mas doía muito ser ofendido para poder perdoar. Seu amigo lhe falou sobre carma, sobre suportar a dor, parecia tão resignado... Não lhe apeteceu. Também nunca quis mover as forças da natureza para atacar como a melhor defesa. Isso era só trocar a dor. Deixaria de lhe doer a ofensa recebida para lhe doer o remorso do mal impingido a outrem. Um dia encontrou Ogum. Nunca mais parou de repetir: " Eu andarei vestido e armado com as armas de São Jorge para que meus inimigos, tendo pés não me alcancem, tendo mãos não me peguem, tendo olhos não me vejam, e nem em pensamentos eles possam me fazer mal. Armas de fogo o meu corpo não alcançarão, facas e lanças se quebrem sem o meu corpo tocar, cordas e correntes se arrebentem sem o meu

Tecendo o amanhã.

Escreveu, planejou, correu, alinhou, julgou, suspendeu,... João Cabral de Melo Neto dizia que galo sozinho não tece o amanhã. Sua sorte era que o amanhecer era inevitável. Era uma força, uma potência da natureza imparável. Enganou-se todas as vezes que acreditava criar o amanhã. Ele sempre viria. Esforçasse-se ou não. Era passageiro de uma viagem não programada para canto algum. Mas era humano, demasiadamente humano. Precisava iludir-se com a ideia de que tudo fazia sentido. Por isso, implorava a Iansã, senhora dos ventos e das tempestades, traga as chuvas, a fúria a força e a valentia. Xangô meu pai, em tuas mãos a justiça, n as minhas, apenas os calos.

Campeão

Amanheceu antes do sol. O corpo ainda acusava sono. O trânsito invariavelmente cheio fazia o relógio escorregar o ponteiro menor de uma maneira paradoxalmente mais veloz que os pneus da condução. A voz que quase não saia da garganta era grossa como areia raspando as paredes sob a pressão dos pulmões. Mas fora brindado com um nascer do sol estupendo. Era igual ao de quase todos os dias, e por isso mesmo era inigualável. A demora, ja não mais assustadora serviu pra compensar alguns minutinhos do sono não respeitado da noite anterior. A voz entregava que a noite fora feliz. Gritara com força para comemorar, era um campeão!

Alijado Aleijadinho

As meias molhadas. Céu confuso. Corpo cansado e peito confuso. O silêncio e os ouvidos cheios. Nas cordas a filosofia. Carpe Diem dizia a tatuagem mais rasa que o pigmento que manchava a pele. Combater o bom combate cravado fundo na alma como espada de fogo em pedra de manteiga. Barroco, essencialmente barroco.

O filho de Ariano

Era madrugada alta, devia ser entre três e meia e meia. Ariano acordou de um sobressalto. Quase se pôs de pé de forma repentina e abrupta, o que fez Joana semi-despertar. Ela já estava pronta para um protocolar "tá tudo bem?" e logo em seguida voltar a dormir, mas dessa vez foi diferente. Ariano pegou-a pelos ombros e olhando fundos nos seus olhos disse: Joana, o nosso filho acaba de ser concebido. Em algum lugar perto de nós ele foi encomendado e logo vai chegar. Achando toda aquela conversa para lá de esquisita, Joana resume toda a sua incredulidade em um cenho franzido e um: vai dormir... Foram anos tentando ter um filho, mas do ventre de Joana ele nunca veio. Ariano sabia que lhe faltava uma criança. Sabia que ela estava em algum lugar, só não sabia onde. Rodou pelas redondezas. Nos primeiros anos se demorava pra chegar em casa do trabalho por ficar circulando com o carro a procura da criança. Chegou a ter alguns problemas no shopping por ser um homem estranho obse

O grito do silêncio.

Dizia Tucídides que "O silêncio deles é uma eloquente afirmação." Alguns milhares de anos depois, o americano Jack Kerouac cria que "o silêncio em si é como o som dos diamantes que podem cortar tudo!" O silêncio lhe parecia sábio, o mais sábio a se fazer, mas eis que se depara com Carlos Ruiz Zafón e a ideia de que "O silêncio só é necessário quando não se tem nada de válido a dizer. Ele faz com que até os idiotas pareçam sábios por um minuto." Estaria fingindo-se de sábio, estaria escondendo-se atrás do muro das lamentações? Ou melhor, teria ele ido para dentro do muro? Nunca estivera em cima dele, sempre teve suas próprias opiniões. Mas, estava disposto a brigar por elas?  Quantas vezes decidiu gritar de pulmão cheio? Quantas vezes precisou gritar até a garganta sangrar? Por que temer? O que poderia ele dizer que não deveria ser dito? Nunca falara de nada que não conhecesse ou não acreditasse. Temia o confronto? Dizem os acadêmi

A estabilidade fulgaz.

Nunca se sentiu tão fragilizado. Justo agora que nunca esteve tão bem. Pela primeira vez a poupança lhe dava o conforto para escolher umas férias que não fossem de apenas três dias em um bate e volta pra algum lugar pertinho de casa. Os vizinhos olhavam torto pra beleza da casa que construiu. Tinha um emprego estável, era reconhecido pela qualidade do que fazia. Mas sentia-se frágil. Ouvia "eu te amo", mas não sabia de quão fundo vinham aquelas palavras. Não lhe faltava um corpo quente e fogoso ao lado. Sentia a falta da atenção, não do cuidado, mas sim do carinho, não do corpo, mas da alma. Poderia ir embora, tinha todas as condições para isso, até mesmo quem quisesse que ele o fizesse. Mas do que adiantava sair se era lá que queria ficar?