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Mostrando postagens de outubro, 2015

Jônatas

- Eu mandei virar filho da puta? Foi a ultima coisa que ouviu antes do zumbido alto começar. Acordou meio babado. Havia desmaiado ali mesmo. Desconcertado e ainda bastante ardido conseguiu sentir uma presença longe pelo canto esquerdo do olho. O zelador olhava meio assustado para ele mas logo desviou o olhar assim que percebeu que Jônatas fixava o olhar no dele. Seu Marcos sabia que aquilo tudo era muito estranho e tinha quase certeza de que tinha a ver com os gritos que escutava vez por outra vindos de trás da quadra ou ali pelos lados do campo. Mas lá ia se meter com essas coisas... esses meninos filhos de gente metida que se resolvam. Sentado no banco da sala de espera da direção Jônatas sabia que ia levar mais uma suspensão. Era tudo que queria. Era a quinta vez que chegava atrasado na aula de depois do almoço. Sempre sem uma boa desculpa. Não deu outra. Três dias em casa. Nunca foi tão feliz em receber um carão da mãe. Heleonora era muito rígida na criação do filho.

Simples

Não eram nem nove horas da noite. Ela queria dormir. Ele teve um dia daqueles e só queria uma abraço. Dormiram abraçados.

Vaidade das vaidades.

Ah, como sofro. Em meu humilde e miserável involucro cedido pelo senhor da criação vou sendo a cada dia tomado por mais e mais enfermidades. Sou tão frágil e fraco. A cada segundo desfaleço-me em suplícios não impostos ou não escolhidos. Padeço ante as agruras que são colocadas ante a mim. Poderia simplesmente negar-me a sofrer. Sim, sei que poderia. Sei que Deus se apiedaria de mim. Afinal, sou tão bom, correto e justo. Sou cheio de amor e temor a Ele. Bastaria um clamor desse pobre servo e Ele me escutaria. Se a ovelha reconhece a voz do pastor, o pastor também conhece o balido de sua ovelha, quanto mais de sua ovelha preferida.  E qual não falaria mais próximo do ouvido do Senhor quanto eu? Assim como João, aquele que Cristo mais amava, eu também sei que me reclinaria sob Seu peito e confidenciaria aos sussurros verdades e Ele me falaria das coisas do alto. Saberia ele que em meio a meu sofrimento nunca deixei de abalar em mim a certeza de que um dia ver

Dentro da terra - parte 2

A lei era clara disse o Barão do Tejo quando anunciou a condenação. Não passava de um pedaço de estrume de mente limitada e de corpo flácido... Com aqueles lábios pendentes e nariz adunco não negava a verdade, também era descendente de mouros, Não é porque agora estava casado com aquela galega de olhos claros, descendente da família de Dom Dinis que isso tiraria dele o sangue marrom que carregava. Nem mesmo com todo o pó branco que esfregava naquela caretonha feia podia esconder sua origem. Mas esse é o mal de todos que são elevados a algum posto de comando ou a novos ares sociais, exacerbam cada uma das características daqueles que já lá estavam em um tosco teatro de aparências onde ninguém consegue ser iludido. As malditas ordenações manuelinas eram uma afronta a qualquer intelecto no mínimo maior que o simiesco. Como punir um estupro com apenas uma multa equivalente ao preço de uma galinha e por outro lado, culpar alguém de invocar as forças da natureza em nome do bem e da prosper

Périplo

Os olhos gulosos percorriam cada linha. Cada curva anunciava um mundo novo. Cada forma era prenuncio de boa esperança. Famintas, as vidraças do olhar captavam cada milimetro. Prescrutavam um mundo de promessas, de conquistas e de glória. Perdeu-se na ponta do sorriso. O retrato hoje seria em preto e branco se a cada olhada perdesse um pouco mais de cor. Queria-a como um navegador. Tinha-a apenas como um pretendente a cartógrafo. Conhecia-lhe cada um dos centímetros. Nunca a tivera. Voltava ao seu périplo com um misto de esperança e de aventura. Havia de ser... se tivesse que ser.

Dentro da terra - parte 1

Passava um pouco das quatro e meia da manhã quando celular tocou. As olheiras cheias e escuras não deixavam esconder que aquelas tinham sido as primeiras duas horas seguidas de sono nos últimos dias. Tinha passado toda a semana anterior dentro do hospital com a avó. Dona Carmélia era uma mulher forte. Mas sendo bem sincero, era uma típica velha chata, cheia de manias e que adorava falar mal dos outros. Não importava quem fosse, empregadas, vizinhas, amigos de infância, pessoas que acabavam de passar na rua em frente a casa de porta e janela bem no centro do distrito onde morava, não importava, a língua de dona Carmélia não tinha preconceito algum. Todos eram igualmente destratados por ela. Justamente a língua lhe pregara uma peça. Há menos de dois meses começou a inchar e a ficar com uma coloração arroxeada. Não precisaram de mais do que uma consulta e trinta e cinco pesquisas no google para saber: era câncer. A notícia teve um efeito devastador. De uma hora pra

Farol

O céu estava cinza. A cabeça era barco a deriva. Era tanto por fazer que quase todos se perdiam só um pouco depois do "fa.." O corpo cansado pediu descanso. A pele suada pedia água. A garganta rouca pediu silêncio. Mas ainda tinha tanto por falar. Tanto por fazer. Tanto para poder ser. Os olhos avermelhados foram conferir no celular mais uma agenda a percorrer. O sorriso contido quase não tinha dentes, mas entre as frestas de lábio emanava amor. O cansaço não se foi. Mas a alegria voltou. Corria por si. Corria por ela. Navegava em mar turbulento. Ela ainda era seu farol.