Dentro da terra - parte 1
Passava um pouco das
quatro e meia da manhã quando celular tocou.
As olheiras cheias e
escuras não deixavam esconder que aquelas tinham sido as primeiras
duas horas seguidas de sono nos últimos dias.
Tinha passado toda a
semana anterior dentro do hospital com a avó.
Dona Carmélia era
uma mulher forte. Mas sendo bem sincero, era uma típica velha chata,
cheia de manias e que adorava falar mal dos outros. Não importava
quem fosse, empregadas, vizinhas, amigos de infância, pessoas que
acabavam de passar na rua em frente a casa de porta e janela bem no
centro do distrito onde morava, não importava, a língua de dona
Carmélia não tinha preconceito algum. Todos eram igualmente
destratados por ela. Justamente a língua lhe pregara uma peça. Há
menos de dois meses começou a inchar e a ficar com uma coloração
arroxeada. Não precisaram de mais do que uma consulta e trinta e
cinco pesquisas no google para saber: era câncer.
A notícia teve um
efeito devastador. De uma hora pra outra a língua mais perigosa de
todo o distrito de Ouro Velho silenciou. A cada sessão de
radioterapia a mulher voltava mais fraca. No final era só um pedaço
meio encraquilhado de pele seca e pelos - que particularmente sempre
lhe saíram em profusão pelas narinas e pelos ouvidos.
Há duas semanas
teve que ser internada. O que mais odiava aconteceu. Teve que sair de
sua casinha no centro do distrito onde sempre morou para ir "praquela
cidade fedorenta dos infernos" como sempre costumava dizer.
Foram dias bastante
puxados para Leonor - era um homem, apesar de sempre ter que lidar
com o olhar meio torto de todos os professores e depois dos
formadores da academia de policia-. Agora era mais conhecido como
Silva... Ele fingia pra se mesmo que não, mas não tinha o menor
gosto pela farda ou pelo distintivo que ostentava, sabia que a
escolha pela força policial foi principalmente para fugir do
Leonor... sabia que seria apenas um Silva, e isso lhe bastava.
Já tinha perdido
boa parte do salário pagando o Matias e o Flores para cobrir seus
plantões enquanto ficava no hospital com a avó. Não aguentava mais
aquela cadeira branca de plástico lhe destruindo pouco a pouco a
coluna e a paciência. Odiava hospital... odiava aquela cadeira...e
acima de tudo, odiava estar ali com a sua velhinha.
Conseguiu um
estagiário dessas escolas técnicas em enfermagem para ficar lá por
50 reais a noite. Precisava de uma cama depois de tantos dias...
Justo hoje o diabo
da velha achou de morrer....
Carregaria essa
culpa para sempre. Sabia que isso ia deixar ela feliz.
Jogou uma água no
rosto.
Pegou a primeira
blusa que encontrou.
Colocou a calça,
sem cueca mesmo e enfiou um pé num sapato qualquer.
Em pouco tempo
estava no hospital, preencheu toda a papelada. Logo, logo liberavam o
corpo. A assistente social queria só saber se precisava de ajuda
para preencher a papelada do plano funerário.
"Puta que
pariu... não tenho essa merda..."
Se lhe diminuíram a
burocracia, lhe aumentaram a responsabilidade.
Ia ter que arrumar
um jeito de enterrar a defunta.
E ainda mais, não
queria carregar o peso da maldição da velha por não ter estado com
ela na hora da morte. Resolveu fazer-lhe o ultimo dos quereres: ser
enterrada no distrito de Ouro Velho.
A droga do cadáver
ainda pesava mais do que pensava. Cadáver... Ca-dá-ver... Lembrou
do Matias falando sobre isso enquanto olhavam para o corpo de uma
travesti linda que morreu num motel engasgada com uma camisinha.
“Corpo dado aos vermes” disse ele... Que merda. Desde esse dia
sabia que queria ser cremado. Mas se ser enterrada era o que a avó
queria, era isso que ela iria ter.
Jogou-a numa rede,
bem a moda antiga.
Foram oito horas
dentro do Uno 1999 que o salário apertado lhe permitia manter. Ah,
mas tinha farol de xenom e dvd de 7 polegadas.
Chegou no cemitério
de muro baixo, bem na hora que o sol começa a ficar com sono.
Pegou a pá de
dentro do porta malas e colocou-se a cavar.
Os vizinhos
começaram a aparecer.
Primeiro o seu
Manoel, depois seu Roberval, logo a dona Marquinha e por ai um
rosário de velhos... depois vieram as crianças. O maldito distrito
parecia não ter jovens ou adultos. Todos eram velhos demais, ou
novos demais. Todos fizeram o mesmo que ele e se mandaram daquele fim
de mundo assim que completaram a idade. Ninguém mais queria se
perder naquele fim de mundo perto da mina abandonada que deu origem a
cidadezinha.
- Oh Leonor... meu
fí... venha cá.... falou o velho Manoel que há muito já tinha
assumido a pá no lugar do policial preguiçoso e de barriga
anunciada. - Ta com quanto tempo que ninguém é enterrado aqui meu
fí.
- Caralho... Era pra
ser nove anos seu Manoel... era pra ser...
Dentro da cova tinha
um corpo. Não conseguiam saber de que era, só que estava de costas.
Tinha uma pedra na forma de sapo em cima da cabeça e nos pés um
monte de galhos enegrecidos.
Não era pra estar
ali... mas estava.
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