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Mostrando postagens de 2014

Homens e cães.

As unhas longas e bem pintadas percorreram-lhe a barba rala com um misto de carinho, seriedade e raiva. O olhar pétreo juntou-se ao dele e com a voz professoral Cassandra lhe disse:  - Heitor, Heitor... os homens realmente são como cães... correm atras do que não tem... até acharem que tem... aí como não sabem o que fazer, correm atras de outra coisa. Com um tapa suave encerrou o assunto. Deu-lhe as costas e foi embora.

A pedra quebrada

Pedro, Pedro, Pedro, pedra, pedreira, pedregoso, prendado, perigoso... perigoso, perigo, perigo, perIGO, PERIGO, socorro, SOCORRO, SOCORRO! O safanão que tomou só atormentou mais a mente divagante. Sentia-se em perigo e o perigo era real. A mão do agente manicomial batia com um peso único. Eram escolhidos entre os mais brutos para cuidar da ala dos alienados. A figura esquia, bigoduda e com um cachimbo na boa apareceu pouco depois atrás do homenzarrão, como uma sombra vigilante. Com a ponta do cachimbo mostrou a direção: - Leve o louco para o choque. Tiras de couro fechadas por fivelas metálicas prendiam o seu corpo, não conseguia se mexer, por mais que insistisse. Sentiu o frio cáustico da cuia de metal que colocavam sobre sua cabeça. De soslaio pode ver na outra ponta da sala o velho barbado. Sua barba era alva como a neve dos alpes suíços, tão próximos da Áustria onde estava... sim, não tinha porque temer, não estava mais no Brasil, eles não iriam mais tentar matá-l

Inferno

Era linda. As coxas roliças. O sorriso límpido. O olhar sincero. A pele suave. A mente sagaz. Chamou-a de inferno.  Era o desejo nunca concretizado. Era o que não se podia tocar.  Alimentava-se de dor.  Lavava-se com lágrimas e com elas tornava-se cada vez mais bela. 

O frango e o suor

O dia pra variar não estava quente... chamá-lo assim seria um elogio. O dia estava escaldante. Por sorte levava os óculos escuros no carro e podia enxergar alguma coisa naquela luz esfuziante do meio-dia. O trajeto entre o carro e o mercantil não poupariam os últimos pingos de água que sobreviviam do banho de agora a pouco. Caçou alguma sombra que desse abrigo mas nada... Como diria o poeta, de repente, não mais que de repente sua mente foi invadida. A marcha começara pelo seu nariz. Sentiu o cheiro saboroso do frango sendo assado e temperado de algum daqueles restaurantes, a mistura entre frango, calor e o espírito do domingo levou-o a um mundo que nunca foi. Lembrou-se de cada risada que não dera sentando na mesa de família, compartilhando os pedaços de frango e decidindo de quem seria a asa, a coxa, o peito... da expressão feliz dela recebendo-o no portão ao chegar com um pote de sorvete acompanhado de um – menino, pelo amor de deus, tu sabe que não precisa tr

(In)Tangível

Era linda. Era incrível. Lembrava a mulher que pintava naqueles rabiscos no caderno. Era aquilo que queria. Amava o sorriso. Deslumbrava-se com o olhar. Encantava-se com o suspiro concentrado. A pele arrepiava sempre que estava próximo e sentia o vento quente que lhe saia das narinas. Ele era inteligente. Era muito boa pinta. Chegou tão cedo e mostrou que era tudo aquilo que podia esperar de um alguém. Adorava o riso fácil que ele tinha. Achava incrível como ele se concentrava em tudo que ela lhe dizia. Os abraços sempre bons faziam com que as chegadas e as partidas fossem sempre aguardadas, mas sempre as primeiras mais que as segundas. Foram um do outro. Ela sabia que era ele. Ele soube que era ela. Mas um quis quando o outro não queria. Ela quis quando ele não podia. Nunca foram, mas sempre puderam ser.

A luz piscando

Olhou mais uma vez. Ainda não conseguia acreditar. Talvez fosse tudo uma loucura provocada pelas horas a fio frente a tela do computador, do tablet, do celular. Precisava fazer alguma coisa. Tinha quase certeza de que sabia o que devia fazer... Mas por algum motivo não conseguia fazer. Já tinha treinado aquilo umas trezentas vezes... na frente do espelho, no caminho da escola, durante o banho... Ensaiara cada palavra que deveria dizer e cada resposta de acordo com qualquer um dos cenários possíveis. Analisara todas as variáveis. Sabia exatamente como agir. Não ia conseguir... era melhor ignorar. Tentaria outra hora... Mas que merda... e agora essa luizinha azul que entrega que ele leu... Tinha que responder... Não... deixa pra lá, ela deve ter clicado no rosto errado e me chamou por engano. Só pode. Isso, é isso. Foi tudo um engano... ou pior, uma hora dessas, em uma sexta-feira, ela pode estar bêbada... Se eu responder a ela estaria tirando vantagem de alguém ébrio... Is

O cimento da paz

A madrugada foi extenuante.  O corpo completamente dolorido até sentia saudade da dormência de a poucos dias atrás. Mas agora que se livraram dos corpos até sobrava espaço suficiente para conseguir esticar as pernas. Sem falar que os cadáveres empilhados faziam com que a barreira aumentasse a altura do buraco e pudessem até mesmo ter o luxo de parar de caminhar agachados ou rastejando.  Depois de duas horas catando os piolhos escutou o grito de jubilo a sua direita! RÁ!!! CONSEGUI.  Von Martius exibia o rato agarrado pelo rabo como rico pescador expunha seus troféus. Jörg também partilhou do jubilo de seu irmão de trincheira. Há mais de dez dias não recebiam nada das linhas de abastecimento. Pelo barulho das explosões sabiam que haviam ficado em meio a uma linha de fogo cruzada e que as bombas inimigas conseguiam atravessar sua linha de trincheira... O que era mais desesperador, afinal, se conseguem acertar mais longe... porque não lhes acertariam t

O Mártir

As escadarias íngremes e cheias de bolor eram uma verdadeira armadilha. Cuidadosamente os outros dois vinham esfregando as mãos nas paredes de pedra para tentar manter o equilíbrio sempre que pisavam fora do caminho aberto e seguro pelos passos constantes dos carcereiros e que o líder do grupo conhecia tão bem e percorria com uma destreza própria da automação dos movimentos. Precisamos ser rápidos parecia dizer a luz sempre rareante que ele levava na mão esquerda e que estava sempre a um passo de desaparecer dos vacilantes seguidores. A luz ficou constante. Haviam chegado. Corpos nauseabundos jogados a esmo ao longo do grande salão anunciavam as boas vindas ao cárcere. Pedaços desconexos de corpos misturados ao odor pululante de pus, sangue e merda foram tão agressivos que a visão do mais jovem variou, sentiu as pernas cambalearem e como se um soco comprimisse seu estômago. Vomitou, sem aviso, sem barulho... vomitou. Quando a vista retornou percebera que havia acertado a cabeça de

Meus pêsames - parte III

-Vamos lá filhinha, faça mais um esforço... Isso. Que menininha obediente. Papai te ama sabia? -Vem cá, deixa o papai escovar seu cabelinho vem. Nossa como ele cresceu esses dias em florzinha? Seu cabelinho ta lindo. - E essas unhas... ai ai ai, tão enormes. Pera, deixa eu pegar as coisas aqui para fazer as unhas. Correu até o outro banheiro onde deixava todos os itens de higiene da pequenina. Tesoura, lixa, alicate, descarnador de cutícula, algodão, esmalte. Tudo ali. - Muito bem, ficou aqui esperando o papai quietinha né?! Vamos arrumar essas unhas que quero você bem arrumada pra recebermos a visita mais tarde ta. - Pronto. Agora vamos tratar de tirar esse cheiro né?! Quero você bem cheirosa filhinha. Levantou-se, ligou o botão do exaustor. Quando ouviu o som constante das pás que levavam o vapor e o cheiro pra fora da sala. Cobriu as mãos com as luvas impermeáveis. Vestiu a máscara. Abriu a tampa da lata. Embebe o pano e começou a passar na criança. Sem reagir a menina foi ba

Ordem

Os camelos voavam suavemente na manhã gélida do Monte Pascoal. Por sobre as colinas podia avistar os cardumes de peixe correndo em direção ao mar para alimentar-se das cabras que colocavam suas narinas para fora a procura de oxigênio. O sol pálido não esquentava mais que um gole de gordura. Engoliu com força a xícara inteira. Precisava estar quente para sobreviver. Assistiu a assombrosa valsa melodiosa dos caçadores correndo abaixo a procura dos planctons saltitantes. Precisava se animar, precisava correr atrás de seu alimento também. A horda não estaria sempre ali para alimentá-lo. O tempo de confusão mental tinha que ficar para trás. Era hora de colocar tudo em ordem novamente. 

Neurosonho

Sentia o peito inflado. O coração palpitava de forma frenética. Os olhos enchiam-se de alegria. Aquele era o momento pelo qual tanto esperara. Erguia os braços e começava a passear de um lado par ao outro transformando a alegria em força para as pernas já tão cansadas dançando pela pista como um avião. Enfim sentiu a faixa sendo ultrapassada! Chegara. O som da multidão ao seu redor comemorando em jubilo a as vitória. Cantavam unissonamente seu... não... quem... como...espera... ESPERA!!! - Senhor Macedo, senhor Macedo. Calma. Sentiu as mãos firmes e a voz impositiva do enfermeiro sacudindo seu corpo gigantesco. Deu por si completamente melado de baba que escorrera da boca aberta. Não importava. Tinha dado certo... pelo menos em parte. Enfim, Carlos Macedo de Almeida no auge de seus 250 quilos havia conseguido sentir na própria pele o que era terminar uma corrida de uma maratona. O sonho de uma vida, interrompido pelo tiro de um ativista pode

O voo.

Os dias correm numa pressa vertiginosa. Mais rápido que eles só a força da mudança. A maré correndo, com a força que só a natureza tem, me impulsionou para frente. Nem queria... não podia resistir. As mudanças aconteceram. Foram necessárias. E quando tudo parecia controlado. Lá vem outra vez. Senti o desespero de não ter os pés no chão. Sentia-me voar. Ah, como o homem sonha em voar. Mas como o voo assusta. Nele não existem certezas, não existem referências, não há onde se apoiar. Mas é preciso voar, porque somente ali, no meio do nada, rodeado pelas nuvens é que alcançamos os nossos sonhos. O medo é irmão da esperança e pai da novidade. Bem vindo medo, bem vindo mundo novo.

Meus pêsames - parte II

Até que enfim Marinalva conseguira um emprego perto de casa.  A economia do país até que não tava tão má e por isso não lhe faltava emprego. Principalmente depois que resolveu deixar de ser fixa numa casa só e passou a atender como diarista.  Todo mundo corria tanto que pareciam nunca ter tempo para fazer as coisas de casa, para isso ela tava sempre lá. Mas por algum acaso do destino sempre que atendia o celular era pra receber chamado de gente lá do outro lado da cidade. Até fazia um certo sentido afinal, lá que estavam os endinheirados, mas em compensação nem por isso eram bons de pagamento, sempre tinha que chorar nem que fosse cinco reais... Com um tempo passou a ter uma convicção de vida, achava que todo rico só era rico porque pechinchava, só podia.   O que aumentara ainda mais seu espanto quando recebeu a ligação de um cara, a menos de vinte minutos de ônibus de casa, e que sem o menor resmungo topou o valor que ela propôs. Não podia perder essa oportunidade. Vassoura

A mudinha

No meio daquele mundo de verde, de sol a pino e sono descansado saiu pra caminhar. Foi alí, no meio do mar verde, onde brotavam um conjunto de pedras escutou o chorar baixinho. Procurou até encontrar a origem daquele lamento tão frágil. Não foi surpresa alguma quando viu que vinha daqueles galinhos tão fininhos e mal tratados. Não precisou de muito esforço para entender, ela tinha sede, ela queria ser grande, ela queria crescer forte e frondosa, mas as pedras que se por um lado eram-lhe a casa, por outro lhe secavam o futuro. Amou-a desde o primeiro momento e a cada dia levava um balde com água, duas ou três horas de conversa e uma grande dose de fé. Cansou de ouvir as risadas pelas costas que o tinham como louco. Preferia fingir que não era consigo. Tinha mais o que fazer, tinha uma vida pra cuidar. Todos os dias ela o recebia com o mesmo sorriso meio triste, acanhada agradecia cada gota recebida e sempre, como um relógio cuco ao meio dia, quando o homem virava para ir embora

A balança

Movia-se repetidamente. O peito tamborilava em um compasso de enlouquecer maestro. O suor pingava-lhe pela ponta do nariz, pelos fios do cabelo, sentia o corpo todo empapado pelo suor. Os braços ardiam do esforço. As pernas tremiam. O movimento repetitivo começava a cobrar o preço. Um preço proporcional ao prazer que esperava. Era um misto de dor e deleite. Contudo a balança estava pendendo para o lado errado. Mas precisava continuar, Sentia que o corpo precisava de um descanso, Mas... Também precisa terminar aquilo, mais do que qualquer outra coisa. Venceu o muro, continuou, Uma estocada a mais, Uma força a mais, Uma passada a mais... Enfim!!! Ergueu os braços para o alto, deu um grito primal. A vitória!!! Atravessara a faixa, terminara a corrida! Vencera... não a competição, mas a si próprio.

Una

Acuada em um canto da sala, os olhos fechados e o corpo retorcido eram a prova da dor e do medo que a acompanhavam. A pele alva como pelo de ovelha de sacrifício ia sendo manchada pelo vermelho escuro do sangue que lhe escorria do peito e do pescoço. Feridas impostas pela traição e que ardiam inflamadas provocando uma febre obscura que a fazia temer por novos golpes. Aninhava o próprio corpo em um pedaço tão pequeno de chão que mal tocava o piso frio da casa que se tornava cada vez maior pelas ausências recentes. Por dentro de si sonhava um sonho torpe e febril onde revisitava cada momento de dor, e a cada instante revia o olhar daqueles demônios cortando-lhe o ar. A cada rosto virado e cara de desprezo fazia com que do plano etéreo surgissem pedras que na velocidade de um piscar atingiam-lhe com força e sempre deixavam o saldo de algum pedaço de osso lascado ou quebrado. Depois vieram as navalhas que lhe perfuraram a carne... Por fim as correntes, diziam que era pra seu bem, que pre

Cruzamento

Conferiu o pano passado pela sétima vez seguida. Arrumou um fiapo do cabelo que teimava em não ficar no lugar. Passou mais uma dose de desodorante, por cima da blusa mesmo... não podia chegar com aquelas duas manchas de suor debaixo do suvaco que teimavam em aparecer sempre que ficava nervoso. Sentiu o estômago gritar mais uma vez, resolveu ignorar... Se tivesse se rendido na primeira ânsia de vômito já não teria mais nada do pão com café requentado que comera de madrugada. - Bem, vamos lá... é hora de mostrar que eles realmente fizeram uma boa escolha o lhe contratar Etevaldo! Vamos lá! Saltitou cinco quadras... chamar de caminhada aquela experiência proporcionada pela calçada desnivelada e a pista esburacada seria elogio demais.  Depois de alguns intermináveis minutos de espera, lá vinha o Grande circular... Esperava pegar aquele mesmo ônibus durante uns dois anos, daí quem sabe o dinheirinho que conseguisse ganhar desse pra dar entrada numa motinha. Quem sabe...  T

A fruta

Ofereceste-me uma fruta tão bela e estava eu tão sedento... Com ferocidade queria provar do suco, chupar os gomos e esfregar-me no bagaço. A fome urgia, gemia, punia. Fazia-me não mais autônomo mas sim um servo da vontade de comer. O raciocínio é filho de mentes sãs e satisfeitas... Pensasse com o cérebro e sente-se com o coração diziam eles... A mim, tudo parece se resumir ao estômago. A fome destrói qualquer possibilidade de sentir-se humano. A fome indispõe-nos completamente ao diálogo e a elucubração... A fome dói e ponto. Demanda ser saciada... E assim estava depois tantos anos de abnegação. De entregar-me completamente a doar... esqueci de comer... Mas uma hora o estômago falou mais alto. Uma hora ele tinha que falar. E nessa justa hora, ofereceste-me aquele fruta. Linda e suculenta... Estava envenenada... O doce que sentia era do curare que me davas. Mas, diria não se soubesse? Procuraria-o menos ainda se soubesse que logo estaria a arquejar? Provavelmente

Julião e Maristela

Eram perfeitos, Julião sabia disso, todos sabiam disso, estava estampada na cara de todos o quanto eram perfeitos. Ele encontrou Maristela quando menos esperava. Vinha de um relacionamento meio conturbado, havia acabado ser rejeitado. Andava meio cabisbaixo, mas por uma daqueles momentos que só o destino é capaz de explicar (ou uma intervenção divina caso vocês, como Maristela, sejam devotos ferrenhos de Sant'Antônio... Que mulher devota, não perdia uma única novena, trezena ou septena, estava em todos os terços na rua ou onde quer que lhe chamassem). Ela rira pra ele no momento mais difícil, na mesma hora aquela gargalhada cheia lhe mostrou que aquela era a mulher. Juntos sorriam de manhã, de tarde e de noite. Com ela conseguia ser o homem mais feliz do mundo... e não, essa não era apenas mais uma daquelas expressões exageradas de amor, era a mais pura demonstração da realidade. Não conseguia resistir a gargalhada dela. Caia no riso também! Juntos construíram uma casa nova, tr

Aquele que um dia quase foi mas nunca chegou a ser e acabou se tornando aquilo lá.

O som alto dos carro de propaganda das lojas vizinhas a rodoviária tocou a insanidade ébria e sonolenta dele fazendo-o despertar. Com a parte de trás da mão limpou a baba misturada com vômito que se colavam nos parcos pelos que tinha ao redor da boca.O jornal velho abaixo de si gemeu como que para lembrá-lo de uma vida inteira, de um mundo inteiro que estava la fora, gritando pela sua volta. Mas não podia, não tinha coragem. Havia jogado tudo fora exatamente por isso... não tivera a coragem certa, para fazer a coisa certa, na hora certa... O gole quente da cachaça desceu queimando a garganta ressecada. O primeiro era sempre assim.  Toda manhã era sempre assim... Era aquilo que fizera de si próprio. Quando teve a oportunidade de ir, não foi. Quando teve a oportunidade de ser, não conseguiu. Quando teve a oportunidade de permanecer, arriscou... Com os braços retesados olhou para si próprio no espelho marcado, quebrado e pequeno dentro daquela moldura laranja de a

A fumaça

Acendeu um cigarro. Tragou com força, queria sentir o calor dentro de si como a tanto não sentia... - Cof... cof... não sabia ao certo o que estava fazendo... Pensou que talvez o cigarro conseguisse fazer com que ele entrasse naquele estado de concentração que só os personagens de filme conseguem ter depois de um momento muito complicado... Tentou mais um, duas, três vezes... sabia que aquilo não era certo. A cada tragada ouviu o Drauzio Varela falar sobe os malefícios do tabagismo, ouviu sua namorada falar sobre como alguém próximo da família sofrera para largar o vício depois que usou indiscriminadamente o cigarro para tentar caber no vestido que ia usar no casamento da filha. Viu um milhar de caixas e seus traqueostomizados e impotentes... Viu, lembrou... Sentiu... Compreendeu. Aquilo era errado, mas queria mesmo assim... Todos nós temos alguma merda a esconder... que seja isso. E que da ponta desse fogo queime o ódio que o consome... Se alguém precisa sofrer com as consequênci

As-salam alaykom -parte I

Perdia-se olhando para as velas que vinham longe. Ao redor delas, pontos escuros no céu sempre limpo, as aves sabem onde está sua presa e como não poderia ser melhor se elas já estiverem presas...  O pano branco da tenda dava-lhe a cobertura necessária para sobreviver ao causticante calor.  - Cafè, s"il vous plâit. O garçom moreno de olhos grandes e um nariz aduncou fez um meneio tão discreto com a cabeça que estava a ponto de repetir o pedido quando ele lhe deu as costas e saiu apressado, pé ante pé em passos curtos mas velozes. Com o canto do olho percebeu a movimentação de seus convivas que ficaram admirados com a habilidade de sua pronuncia. Sempre se orgulhara da facilidade em aprender a língua dessas crianças.   Tomou um susto quando reparou que a vela já havia percorrido pelo menos metade da distância até o porto. Os ventos hoje estavam favoráveis... Um bom sinal.  Os outros ocupantes da mesa estavam inquietos. Talvez por nunca terem estado diante de uma oportuni

Vem-cá-corre-me-acompanha!

Huuuummmmm carne-preta-cheiro-fumaça . Ré...ré... rée!!! Saltitou rapidinho saindo da varanda geladinha e foi pros lados do deck, era pra lá que o faro apurado apontava. cadê-grande-cabeça-da-matilha? cadê-eles? Aguçou seu faro e tinha a mais plena certeza, pelo menos o pequeno-aperta-rabo-late-muito tava ali, conseguia sentir o cheiro dele ainda novinho saindo de perto da coisa-queima-carne-boa indo em direção ao água-muita-briga-quando-bebe. Em dois saltos já tava lá, mas nada do pequeno... Sem duvidar do próprio faro, mas só conferindo da mais uma bela puxada de ar... Sim, ele tava ali, o cheiro tava bem aqui... mas cadê? Chega perto da ponta-da-pra-beber-sem-molhar e consegue ver todo turvado dentro da água o corpo do pequeno. Por isso não tinha conseguido identificá-lo logo... a água tinha esse poder de arrancar o cheiro do povo-grande-zuadento-que-da-comida. Sai-dai-pequeno , falou... Sai-dai-pequeno, sai-dai-pequeno .... nada de resposta... Saltitando de um

Cassandra

A luz amarelada entrava turva pela vidraça empoeirada do terceiro andar. Se alguma viva alma transitasse por aquela rua esquisitíssima naquele momento poderia ver o corpo do homem completamente nu encostado na janela e com os olhos perdidos. O vento frio passava pela fresta da janela e batia contra a pele de Heitor pregando no corpo o suor do gozo de a poucos minutos. O cabelo crespo, suado, caía-lhe sobre os ombros recobertos de pelos e músculos firmes, fruto do trabalho constante. Olhava para o fim dos tempos e mais além. Via o passado, relembrava as rizadas, repassava cada uma das conversas, o pulso acelerava mais uma vez... Sentia o frio na barriga, filha do medo, da tensão de ser inadequado, de não dar certo. Sentia-lhe novamente o cheiro do cabelo castanho liso, removia-lhe mais uma vez a timidez com aquelas piadas sem graça, mas que como a água iam levando fragmento por fragmento o muro da sisudez própria de Cassandra. O rangido da cama o despertou para a presença dela.

A mal comida

Sentia a água gelada caindo em gotas grossas pelo corpo. Como precisava daquilo. As noites mal dormidas começavam a cobrar seu preço. Os olhos sempre perdidos tentavam ter o sonho que a noite não conseguira alcançar. A vista somente remetia aos lábios roxos do corpo do pobre pai que há tantos dias não respondia a medicação. Aquele corpo branco e frágil como o de um passarinho mal saído da casca... Casca, era isso que seu pai havia se tornado... Mas ainda não era hora... Por que tão cedo? Ainda havia o moleque pra terminar de educar... Quantas vezes Carolina não se colocara contra a decisão do pai, já idoso mas que mesmo assim decidira adotar uma criança...  O que tinha de velho tinha de teimoso... Agora, no auge da adolescência aborrecida o garoto encontrava-se nas portas de ficar sem pai, mais uma vez... PEM PEM PEM PEM! O despertador a tirou do torpor provocado pelo relaxamento proporcionado pela água... Precisava se apressar. Cabelo, dentes, maquiagem, roupa,

o chamado

Sete, oito... dez anos... não conseguia lembrar ao certo por quanto tempo ouvia aquele chamado. Por vezes chegara a sentir a voz praticamente dentro dele. Por outras, o som distante parecia que ia se perder e aumentava dentro dele o sentido de urgência. Não podia deixar que se fosse. Tentou por diversas vezes esquecer a voz, mas ela sempre reaparecia, ela sempre reaparecia. Em determinado momento fingiu para si mesmo que não era nada, que não havia voz alguma, que tudo não passava de invenção de seus próprios sonhos e desejos... Eram dias tristes, solitários, reais... Mas como sempre, ouvia o chamado e sentia o peito aquecer, sentia-se calmo, sentia que era o certo a se fazer. Jogou tudo para o alto, correu o máximo que suas pernas conseguiam correr, enfrentou ladeiras, montanhas, riachos, vales secos, rios caudalosos e sol causticante, não sabia ao certo para onde ia, mas tinha a plena certeza de onde chegaria. E chegou! Escalara horas a fio, a mente pesava pela falta de ar

Meus pêsames

Meus pêsames... ...meus pêsames... ...meus... pêsames.. ...meus... ...meus... Fechou os olhos e recostou a cabeça no estofado da poltrona, não conseguia retirar a imagem da cabeça nem as vozes que incessantemente falavam de um sentimento de uma forma completamente sem sentido... Meus pêsames... meus pêsames... O que diabos queriam dizer com isso? Por que diabos alguém diria isso... O que era isso? Sentiam o pesar pela perda dele e por isso partilhavam-no com ele... sabia a resposta, mas ela não respondia nada... Achava menos cruel quando alguém simplesmente vinha em silêncio e o abraçava... apertado, demorado... Sentia o conforto, por alguns milésimos de segundo, mas sentia... Sentia muito mais calor quando lhe transmitiam seus sentimentos com um olhar de compaixão... Isso era muito melhor. Sentiam e compartilhavam da mesma paixão que ele... Paixão que é amor, sacrifício e ao mesmo tempo sofrimento... Compadeçam-se de mim... mas nunca, nunca me deem seus pêsames... já

Ela e eu

Ela disse pode ser... Eu sorri... Ela me falou de sonhos... E eu sonhei... Ela me contou seus segredos... Avidamente eu ouvi... Ela me provocou... Eu aceitei... Ela me fez rir... E eu ri, como eu ri... Um dia eu disse Eu te amo... Ela disse basta... Eu falei que queria um beijo... Ela se virou... Eu me humilhei... Ela fechou a porta... Ela entrou... E eu parti... Em um milheiro de pedaços me parti... E ainda não sei como juntar... (sugestão para ouvir lendo:  beautiful war )

Dois e meio.

- Boa noite moça, tudo bem? - Tudo ótimo. - E ai, como foi o encontro do pessoal lá no João? - O pessoal não foi, fomos só eu e o Walter. - Hum... - Ficamos bebendo um pouco e depois cantamos Legião. kkkk - Que massa, amizade é isso. Muitos sorrisos sem precisar de muita firula. - Pois é, depois vimos umas besteiras na internet, e o Walter só bebendo. kkkk no final o póbe tava de olho trocado.  - kkkkkkk, já é né? - Pois é... ei, vou ficar off line aqui. - Tudo bem, eu to de saída já. - Vaila, porquê? - Tenho que arrumar umas coisas, amanhã vou viajar. - Ei, posso te dizer só uma coisa? - Fala. - Acho o mundo muito injusto. - ???? - Sério, deveriam haver dois de você. - Concordo. - Hahahaha. - Bem, eu sei o meu porque, qual é o seu? - Fala primeiro o teu que digo o meu depois. - Pq eu queria vc, ao seu lado me sinto bem. - O meu motivo é o mesmo. Deveriam ter dois de ti, e um deles ser meu. Vc tem tudo que eu quero, que eu preciso... - Poxa... uma das coisas que

Humanidade

Hoje vi uma das cenas cotidianas que provam que dinheiro não mede dignidade ou caráter de ninguém. Voltava caminhando pela rua do Fórum, aqui no Maranguape, quando um carro arrumadinho passada em velocidade média ao meu lado. Segundos depois começo a escutar grunhidos de cachorro... Sim, ele atropelou o animal... Num rápido relance dava pra ver, pela velocidade e por não ter nenhum outro veículo atrás dele que dava pra frear... Segundos depois, quando estava para atravessar a rua, vi que dois rapazes que estava com um daqueles cascos de geladeira adaptados para carregar coisas se aproximaram do cachorrinho. Enquanto um acalmava, outro tirava umas frutas de dentro da carrocha. Quando terminei de atravessar, eles já haviam acalmado o bichinho... - Ei cara, o que vocês vão fazer? - Vou levar ele pra cuidar. - Como assim? - Vou ver se limpo essa perna dele pra num pegar bicheira e deixo ele amarrado uns dias pra ver se melhora. - Sério? - É um ser vivo de deus má, um motorista desses de

A merda fica!

Acordou dois minutos antes do despertador. Jogou-se debaixo do chuveiro. A água retirava o cheiro de cama que ainda impregnava-o de preguiça. Lanche... Dentes escovados...Fio dental... Arrumou a cama... Gel no cabelo... Blusa azul de botão... Penteou os cabelos... Porta... Duas doses de ar, o vento prenunciava que o dia seria quente. Portão... rua... - Bom dia?! - Opa, tudo bem?!  - E a senhora como vai?!... Na parada, os mesmos rostos de sempre. Lotação...  "Secretária, que trabalha o dia inteiro comigo..." Fones ativos "Cosmic Love" era o melhor começar o dia. Abandonou o ônibus com seus passageiros, motorista e aquele mesmo repertório de sempre no programa do Evaldo Costa. - Com licença, com licença...  Rua... Calçada... Escadas... Chave... OI?! QUE MERDA É ESSA? Os olhos pareciam não querer acreditar, mas o olfato não enganava, no meio daquele caos tinha um tolete de bosta, de BOSTA no meio da sala!!! Entronizadamente postado n