A mal comida

Sentia a água gelada caindo em gotas grossas pelo corpo.
Como precisava daquilo.
As noites mal dormidas começavam a cobrar seu preço.
Os olhos sempre perdidos tentavam ter o sonho que a noite não conseguira alcançar.
A vista somente remetia aos lábios roxos do corpo do pobre pai que há tantos dias não respondia a medicação. Aquele corpo branco e frágil como o de um passarinho mal saído da casca...
Casca, era isso que seu pai havia se tornado... Mas ainda não era hora... Por que tão cedo? Ainda havia o moleque pra terminar de educar... Quantas vezes Carolina não se colocara contra a decisão do pai, já idoso mas que mesmo assim decidira adotar uma criança... 
O que tinha de velho tinha de teimoso...
Agora, no auge da adolescência aborrecida o garoto encontrava-se nas portas de ficar sem pai, mais uma vez...

PEM PEM PEM PEM!

O despertador a tirou do torpor provocado pelo relaxamento proporcionado pela água... Precisava se apressar. Cabelo, dentes, maquiagem, roupa, rua... imobilidade... O engarrafamento de sempre...
Duas horas depois lá ia ela escada acima, tinha muito para resolver e nem chegara já estava com prazo estourado.
A papelada já lhe esperava em cima da mesa. Foram horas revendo todas as minutas e protocolos. Enviou tudo para o superior.
Pronto, agora conseguiria seus cinco minutos de descanso antes de pegar mais uma vez o trânsito e dormir mais uma noite ao lado do pai. Mas primeiro tinha que passar pra ver se o moleque tinha ao menos o que comer em casa...
Merda, sempre esqueço esse menino...

Dezesseis e trinta...

- Com licença, dona Carolina, seu Braga tá chamando. O homem tá assanhado, se fosse a senhora já me preparava.

 - Me diga uma coisa Carolina... eu lhe pago pra que? Óbvio que não é para dormir... Então crie vergonha nessa sua cara e trate de me enviar material somente quando estiver pronto para ser protocolado. Por causa do seu desleixo de merda vou perder o prazo de entrada e deixar de receber mais de vinte mil reais amanhã... Sabe o que é isso? Claro que não... você vai precisar de anos de trabalho para chegar ao menos perto disso... E quer saber... ficar desempregada só vai fazer esse valor ficar mais distante, então, trate de consertar toda essa porra antes de sair ou comece a procurar algum maluco que queira lhe dar emprego! Sai da minha frente vai... tô enjoado dessa sua cara de peixe morto...

Antes de fechar a porta de sua própria sala atrás de si, Carolina foi tomada pelo distante, mas inegável som de risadas abafadas...
Olhou para trás e viu aqueles dois...
Ele sentado todo largado em cima da mesa dela com o corpo jogado sobre o cotovelo... Ela com um olhar safado... Só podiam estar rindo dela... Eles que deveriam ter imprimido e copiado cada uma das páginas que ela deveria revisar e encaminhar para o seu Braga... E agora estavam ali, rindo... Só podia ser dela, tinha certeza... Aquela branquela sempre quisera o seu lugar... Só podia ser isso.

Com três passos atravessou a pequena sala do escritório.
- Tão rindo de que seus pedaços de inutilidade?
- Que isso Carol tamo aqui marcando um canto pra beber depois do serviço...
- Dona Carolina... DONA CAROLINA... Primeiro: engula a merda desse sorriso de vagabundo, segundo: quem diabos é você pra me tratar com essa intimidade? E o que diabos vocês vão fazer depois do expediente se conseguiram durante o dia todo apenas abaixarem as calças e cagar em cima da minha cabeça... Trabalhar que é bom, nenhum dos dois fez, então (jogou todos os papeis pro alto) tratem de catar cada folha dessas, refaçam tudo e agora só quero receber todas as vias depois de detalhada revisão... Comecem agora, estou esperando na minha sala!

PA!!!!
Fechou a porta com força atrás de si deixando quatro olhos completamente atônitos tentando entender o que tinha acabado de acontecer.

- Caralho Lu! Que porra foi essa?
- Coisa de gente mal comida... só pode...






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