Postagens

Mostrando postagens de 2015

Chocolate e cenoura.

- Alô. Fala. - D? - Oi Tainá. Fala. - Ainda ta pelo trabalho Dimitri? - To sim, mas já to quase saindo. (Meio segundo de silêncio lá do outro lado da ligação) Aconteceu alguma coisa? - (com voz de quem sorria sem graça) Nada nada. É só que eu fiz um bolo de cenoura com cobertura de chocolate que você gosta. Ainda gosta né? - E como gosto! Chego aí em meia hora ta?! Ao fim da noite a boca misturava o gosto doce e salgado de quitute e de suor. Ainda se gostavam, mesmo que não funcionassem juntos - e olha que tentaram - mas funcionavam muito bem quando separados se encontravam por alguns instantes.

Tia Helena estava certa.

Algumas vezes as coisas fogem do lugar, mas na grande maioria das vezes a tia da quarta série estava certa quando falava sobre o tal ciclo vital. Lembro como se fosse mês passado da tia Helena, pele clara, cabelos escuros cortados na altura do ombro e penteados com as pontas para fora, sempre com uma calça e uma blusa folgada em frente a lousa de cimento verde falando com o giz na mão que cada ser vivo segue o ciclo onde ele "nasce, cresce, pode se reproduzir e morre." Sempre aparecia alguém para falar, "ah, mas nem todos se reproduzem" mesmo com a resposta já implícita na própria pergunta. Durante muito tempo me recusei a acreditar que a vida fosse apenas um percurso biológico previamente estabelecido, nunca aceitei a ideia do fado, de um destino a ser percorrido... Mas tia Helena tinha razão. Até pouco tempo lembro que nossa principal alegria era sair com os colegas, fosse para ver um filme, comer alguma porcaria ou namorar. Não faz muito tempo começou uma s

Sonhófago.

A torre de Pisa era bonita, ficava melhor quando tinha ao seu fundo a muralha da China. Paola Oliveira completava o cenário. Virando-se para o outro lado tentava intensamente mas não conseguia escolher qual foto do Paulo Zulu era a melhor. As pontas dos dedos farejavam com ventosas cada um dos objetos ao redor.  As longas e pontudas orelhas giravam a partir de cada um dos cotovelos, ombros, costas e nuca. Ligavam-se a qualquer suspiro de amor ou aceleração de respiração. A sétima orelha captou o sinal. O sorriso gigante cheio de dentes, amarelos de ouro abriu-se de uma ponta a outra da careta. Estendeu os braços de onde saiu uma pele fina, nojenta e enegrecida que lhe permitia planar com o calor dos corpos humanos. Cada um de nós exalava o necessário para que ele nunca estivesse parado.  Achou seu alvo, estava sentado a frente do computador da firma, tinha aberto na tela a página da faculdade particular. Sempre sonhara em ser enfermeiro, tentara seis vezes En

Sementes de anarquia.

Os braços já estavam meio dormentes com o frio do vento cortante que lhe pressionava os braços. O mesmo vento invadia por cima e por baixo da blusa de botão meio fechada/meio aberta. Ia na velocidade da loucura. Na cabeça o capacete não conseguia oprimir as ideias de um mundo justo e libertário que preenchiam aquela mente anarquista. As batidas aceleradas do peito tocavam no ritmo de Pet Sematary. Não lembrava de mulheres ou filhos. Teve muitas e alguns. Cada um tinha ficado com algo bom seu e sempre que podia tentava dar um pouco mais. Não era brigado com nenhuma. Todas chegaram e saíram sabendo o que ele tinha e não tinha a oferecer. Às crianças tentava dar o que tinha de melhor, e não era dinheiro - esse era só um mal necessário para poder sobreviver, curtir, beber, fumar, ouvir,... - Deixava para eles o gosto musical e as provocações de uma outra forma de ver o mudo. Nada de ordens, nada de chantagens com presentes caros e adestramentos sociais... Dava a eles o que tinha d

O mártir - final.

Era uma manhã de sábado. As folhas das árvores caiam intensamente. Era outono, o inverno já se anunciava com força. Logo as ruas de Roma estariam um pouco menos habitadas pelos eternos mendigos que davam a cidade um som ininterrupto de moedas batendo contra canecas. Por enquanto ainda resistiam. Muitos nem sequer repararam no ser cambaleante que percorria as ruas que davam para o palácio imperial. Tantos outros seguiam o mesmo caminho. Era dia da justiça de Júpiter. O imperador ouviria alguns reclamantes até se aborrecer e colocar algum magistrado para resolver os problemas mais simplórios como sempre fazia. Cada um que entrava no palácio levava algum presente para Maximiano César. Não que ele precisasse. Nada lhe faltava, era o senhor do mundo. Por isso mesmo receberia os presentes, não por precisar mas sim por merecer. Setenta e duas pessoas foram admitidas pelos guardas dentro do cercado que separava a praça das escadarias onde o deus romano atenderia aos miseráveis que lhe

Nanoolhos

O carregamento deveria chegar por volta das dez e meia da noite. O carro forte com placas de diamantita e era tripulado por três soldados em exotrajes com dois drones de combate dando suporte aéreo. A carga de hoje era especial, dois potes de biodados com lembranças do primeiro-ministro Cunha. Hermes sabia do risco, mas queria enfrentá-lo mesmo assim. Era um daqueles que podiam chamar de inconformados. Eles faziam parte de um movimento que intencionalmente removeu através de cirurgia as lentes de suas vidas. Mais do que isso, acreditavam que esses recursos tecnológicos excessivos que permeavam cada passo deles na sociedade só os tornavam reféns. No início os nanoolhos foram bem vindos. Auxiliavam a recuperar a visão de pessoas vitimadas pelos gases tóxicos usados pelos martiáquicos na guerra dos mundos em 2130, mas não havia nada que o biocapitalismo não conseguisse transformar em lucro. Em menos de dez anos protótipos bem mais leves e em formatos de lentes já estavam a venda

Letras ao vento.

Coisa ruim é querer escrever sem bem saber o quê. O pior ainda é saber sobre o que não se quer falar. Porque se contrário fosse, qualquer coisa já era boa o suficiente. Não o sendo se fica com a sensação de que já o pouco que se tem é o bastante. Mas não é. Muito querer falar parece causar engarrafamento de letras. Ainda não entendi bem se na ponta da goela, se no estreito dos punhos antes da rotatória da mão que leva as bifurcações dos dedos ou se travam logo ali perto mesmo do juízo, na parte frontal da cabeça. Deve ser por lá. Deve ser por isso que o espirro estava tão insistente. Eram letras presas. Talvez, só talvez, quem sabe, se juntasse todos os escarros no papel teria algum texto que fizesse sentido. Ou não... quem é que vai saber?

Jônatas

- Eu mandei virar filho da puta? Foi a ultima coisa que ouviu antes do zumbido alto começar. Acordou meio babado. Havia desmaiado ali mesmo. Desconcertado e ainda bastante ardido conseguiu sentir uma presença longe pelo canto esquerdo do olho. O zelador olhava meio assustado para ele mas logo desviou o olhar assim que percebeu que Jônatas fixava o olhar no dele. Seu Marcos sabia que aquilo tudo era muito estranho e tinha quase certeza de que tinha a ver com os gritos que escutava vez por outra vindos de trás da quadra ou ali pelos lados do campo. Mas lá ia se meter com essas coisas... esses meninos filhos de gente metida que se resolvam. Sentado no banco da sala de espera da direção Jônatas sabia que ia levar mais uma suspensão. Era tudo que queria. Era a quinta vez que chegava atrasado na aula de depois do almoço. Sempre sem uma boa desculpa. Não deu outra. Três dias em casa. Nunca foi tão feliz em receber um carão da mãe. Heleonora era muito rígida na criação do filho.

Simples

Não eram nem nove horas da noite. Ela queria dormir. Ele teve um dia daqueles e só queria uma abraço. Dormiram abraçados.

Vaidade das vaidades.

Ah, como sofro. Em meu humilde e miserável involucro cedido pelo senhor da criação vou sendo a cada dia tomado por mais e mais enfermidades. Sou tão frágil e fraco. A cada segundo desfaleço-me em suplícios não impostos ou não escolhidos. Padeço ante as agruras que são colocadas ante a mim. Poderia simplesmente negar-me a sofrer. Sim, sei que poderia. Sei que Deus se apiedaria de mim. Afinal, sou tão bom, correto e justo. Sou cheio de amor e temor a Ele. Bastaria um clamor desse pobre servo e Ele me escutaria. Se a ovelha reconhece a voz do pastor, o pastor também conhece o balido de sua ovelha, quanto mais de sua ovelha preferida.  E qual não falaria mais próximo do ouvido do Senhor quanto eu? Assim como João, aquele que Cristo mais amava, eu também sei que me reclinaria sob Seu peito e confidenciaria aos sussurros verdades e Ele me falaria das coisas do alto. Saberia ele que em meio a meu sofrimento nunca deixei de abalar em mim a certeza de que um dia ver

Dentro da terra - parte 2

A lei era clara disse o Barão do Tejo quando anunciou a condenação. Não passava de um pedaço de estrume de mente limitada e de corpo flácido... Com aqueles lábios pendentes e nariz adunco não negava a verdade, também era descendente de mouros, Não é porque agora estava casado com aquela galega de olhos claros, descendente da família de Dom Dinis que isso tiraria dele o sangue marrom que carregava. Nem mesmo com todo o pó branco que esfregava naquela caretonha feia podia esconder sua origem. Mas esse é o mal de todos que são elevados a algum posto de comando ou a novos ares sociais, exacerbam cada uma das características daqueles que já lá estavam em um tosco teatro de aparências onde ninguém consegue ser iludido. As malditas ordenações manuelinas eram uma afronta a qualquer intelecto no mínimo maior que o simiesco. Como punir um estupro com apenas uma multa equivalente ao preço de uma galinha e por outro lado, culpar alguém de invocar as forças da natureza em nome do bem e da prosper

Périplo

Os olhos gulosos percorriam cada linha. Cada curva anunciava um mundo novo. Cada forma era prenuncio de boa esperança. Famintas, as vidraças do olhar captavam cada milimetro. Prescrutavam um mundo de promessas, de conquistas e de glória. Perdeu-se na ponta do sorriso. O retrato hoje seria em preto e branco se a cada olhada perdesse um pouco mais de cor. Queria-a como um navegador. Tinha-a apenas como um pretendente a cartógrafo. Conhecia-lhe cada um dos centímetros. Nunca a tivera. Voltava ao seu périplo com um misto de esperança e de aventura. Havia de ser... se tivesse que ser.

Dentro da terra - parte 1

Passava um pouco das quatro e meia da manhã quando celular tocou. As olheiras cheias e escuras não deixavam esconder que aquelas tinham sido as primeiras duas horas seguidas de sono nos últimos dias. Tinha passado toda a semana anterior dentro do hospital com a avó. Dona Carmélia era uma mulher forte. Mas sendo bem sincero, era uma típica velha chata, cheia de manias e que adorava falar mal dos outros. Não importava quem fosse, empregadas, vizinhas, amigos de infância, pessoas que acabavam de passar na rua em frente a casa de porta e janela bem no centro do distrito onde morava, não importava, a língua de dona Carmélia não tinha preconceito algum. Todos eram igualmente destratados por ela. Justamente a língua lhe pregara uma peça. Há menos de dois meses começou a inchar e a ficar com uma coloração arroxeada. Não precisaram de mais do que uma consulta e trinta e cinco pesquisas no google para saber: era câncer. A notícia teve um efeito devastador. De uma hora pra

Farol

O céu estava cinza. A cabeça era barco a deriva. Era tanto por fazer que quase todos se perdiam só um pouco depois do "fa.." O corpo cansado pediu descanso. A pele suada pedia água. A garganta rouca pediu silêncio. Mas ainda tinha tanto por falar. Tanto por fazer. Tanto para poder ser. Os olhos avermelhados foram conferir no celular mais uma agenda a percorrer. O sorriso contido quase não tinha dentes, mas entre as frestas de lábio emanava amor. O cansaço não se foi. Mas a alegria voltou. Corria por si. Corria por ela. Navegava em mar turbulento. Ela ainda era seu farol.

Dominação

Deixou a água escorrer preguiçosa pelo corpo. A pele alva já estava rosada do calor da água quente que caia em cascata.  A mão macia adornada de unhas grandes percorria o próprio corpo de forma languida. Era bela. Era desejável. Sabia disso. A qualquer momento ele ia largar o trabalho e ia correr pra ela. Como sempre ia inventar alguma desculpa sem muita graça para entrar no banheiro e perguntar se podia terminar o banho junto com ela. Já sabia no que isso ia dar. Era sempre assim. Mesmo nas outras vezes em que dormiu fora. Ele fazia uma cara de emburrado, ficava com uma tromba do tamanho do mundo. Mas no final, o desejo sempre vencia a honra. Ele sabia que ela era bela. Ele sabia que ela era desejável. Ele sabia que era sempre assim. . .. ... A pele começou a arder depois de quase uma hora debaixo da água quente. Não podia acreditar que um CD inteiro da Florence já tinha tocado e ele ainda não tinha vindo. Deixou cair o condicionador. Talvez o

Querência.

Cansado de querer, por um segundo queria deixar de lado essa querência, que de tanto ser apenas um querer já tinha caras de sofrer. Queria e sofria. Era quase um mantra, um escopo de sensações e de lição. Sidarta Gautama tinha razão. Querer é sofrer, porque quem tem nunca se contém. O pior de todos os quereres é o de parar de sofrer. O querer nunca se sacia. Muda o alvo desejado, mas nunca deixa de desejar. O desejo é a fonte de toda a dor. Por querer não ter mais, sempre tinha. Dentro da cabeça e do coração. Era um jeito triste... mas era assim que tinha. Aquele que nada quer tudo tem. Aquele que tudo quer, nunca tem nada. Ao que vive por um desejo: uma gaiola de lembranças e sonhos. Está sempre preso pelos pés e pela cabeça. Seu passado e seu projeto de futuro o engaiolam. Ao que consegue não querer. O flanar é o prêmio. Circula livre pelos corpos, pelas almas... por outras gaiolas. Querer é sofrer.

Fetichismo

Viu-se cercado pelas peças de decoração que acabaram de chegar do mercado. Para cada lado que corria os olhos via móveis: coloniais, modernistas, usados e novos. As paredes estavam repletas de quadros, faixas, e relógios... cucos, digitais e analógicos, tanto faz. Sorriu. Por entre as pálpebras semicerradas viu. Não acreditava no que estava vendo. Havia uma fresta de parede azul que ainda era visível. Inquietou-se. Tinha que mover aquele quadro de Dali... ele era do tamanho perfeito, conseguiria cobrir o espaço vazio. Esticou o braço. Não alcançou. As pernas presas entre as diversas mesas de todos os tipos diferentes de madeira. Carrara, carvalho, cambará, angelim, caxeta, cedro... Sentiu-se satisfeito pelo que tinha. Tinha bastante. Apesar de que... Aquela fresta de parede permanecia não coberta. Não era o bastante. Precisava de mais. Pegou um dos trinta celulares para ligar pro depósito. Ergueu a vista em um exercício de pensamento... - Meu Deus!!! O teto estav

De pedra em pedra...

Passou a mão sobre o rosto, a mão ainda molhada da água da torneira borrou a maquiagem por debaixo dos olhos. Desgrenhou os cabelos com cuidado, não podiam ficar demais, mas tinham que estar fora de ordem. Colocou a bolsa ao redor da boca e gritou com força. Uma, duas, três vezes. A voz falhou um pouco... perfeito. Estava pronta. O queixo sempre ereto deu lugar as costas envergadas e um olhar perdido. A imagem era perfeita. Carla entrou na sala. Eles eram muitos, mas ela era ela. Cada um falou. Todos confirmaram a mesma história. Todos os dias Carla ia ao trabalho. Quando chegava na porta podia ver lá em baixo o carro da coordenadora de vendas. Todos os dias ela pegava uma brita do montinho que os pedreiros deixavam perto do portão e arremessava no vidro. Todos os dias ao longo de mais de nove meses ela fez isso. - Eu não fiz. Mas todos diziam que ela fez. - Eu não lembro de ter feito. Buscou algum olhar de apoio no meio da sala... encontrou um ou dois qu

Morreu...

Não era seu primeiro dia no emprego. Não estava com casamento marcado. Não era um caso de superação legal pra passar no Jornal Nacional. Não era parente de ninguém famoso. Mas era alguém. Respirava como todo mundo. Piscava os olhos constantemente. Até usava fones de ouvidos no ônibus. Não usa mais. Levou um tiro na cabeça atravessando a rua. Não sei se ia pra casa, se vinha do trabalho, se estava apressado ou andando calmamente. Só sei que morreu. Nunca soube, nem saberei quais ideias ele tinha. Mas vi o que tinha dentro da sua cabeça. Acho que o tiro não era pra ele. Mas acabou achando-o mesmo assim. Morreu... atrapalhou o trânsito... parecia até trecho de música do Chico Buarque... Mas não era. Era só mais uma morte. Como tantas outras que se repetem todos os dias. Só mais um número nas estatísticas de nossa guerra cotidiana.

Pugilismo

Força. Vamos lá cara: Força! Que merda: FORÇA! Bate mais. Isso, quebra a cara dele. Vai pra cima droga... Bota pressão. Mais um, outro, outro... Não perde pressão... Não perde... Não deixa ele sair das cordas.... Que merda... vai atrás dele. Não deixa ele te acertar. Droga olha esse contragolpe. Isso bate ne...não porra...sai daí. Levanta a guarda. LEVANTA A GUARDA. . .. ... Puta merda Jonnhy... você desistiu. - Eu não desisti droga... eu não aguentei... Eu batia, batia e batia cada vez com mais força e ele não caiu. Ele fechou a guarda e esperou. Depois ele desapareceu da minha frente. Ele voava ao redor de mim e eu fiquei feito idiota naquele ringue procurando ele como quem tenta matar um mosquito com um jornal e não consegui... Eu tentei droga, mas eu perdi. - Você perdeu porque é um fraco... Você teve ele nas cordas. Você teve tudo para vencer e mesmo assim deixou ele escapar. Você deveria ter vergonha de bater como um mocinha. Você não passa de.... O cruzado

Clichê em branco e vermelho

Era um puta de um clichê, mas era... então que seja. A pele alva já lhe prendia a atenção. Mas os cabelos vermelhos... O fogo que prenunciavam era apenas uma fagulha. Dentro dos olhos banhados pelo sol, o verdadeiro fogo se anunciava. Era um fogo de vida. Um fogo que consumia normas. Que transformava em chamas pequenas regras e convenções. Um fogo que a fazia assustadora... Assustadoramente bela com sua fome, de ser, de possuir, de viver. Era um puta de um clichê... Os escritores já encheram milhares de paginas sobre os cabelos vermelhos. Madeixas que prenunciam sempre a magia... da natureza e do sexo. Os roteiristas de revistas em quadrinhos sem pudor de se fazerem repetir colocavam a cor vermelha em todas as mulheres prenhes de vida e de poder. São uns filhos da mãe... Corajosos apontam para o óbvio. Até então parecia ser apenas um clichê. Mas ela mostrou que era um puta de um clichê. Repetido, nada original, mas verdadeiro. Queimava e

O mártir - parte III

O cheiro de sangue empesteava a sala toda. As vestais corriam para todos os lados. Os corpos languidos e suados dançando como sombras ao redor dos fogos que alimentavam as piras incensórias que vertiam fumaça odorizada por todo o espaço. Nem elas conseguiam esconder o cheiro de morte. Em cada um dos quatro quantos da sala tambores e flautas tocavam em honra dos deuses. Em cada porta pretorianos firmes como o mármore das paredes. - Vede cada um de vós meus capitães. Esses cem foram retirados dentre muitos. Esses cem ousaram dizer que sou um como vós... ou como eles. Agora eles estão mortos e eu permaneço de pé. Sou como eles? Em uníssono os vinte generais que se acumulavam junto do imperador no alto da sacada do trono repetiram: Não, tu és deus, tu és Maxinimiano Jupeteriano César Augustus. Tu és o senhor da vida e da morte. Tu és o nosso pai. Tu és. Com as mãos na cintura gargalhou com força. Seu pescoço grosso de general experimentado em muitas guerras coroava o

A jornada da Fé

O navio corria ligeiro. O silêncio imperava. Não haviam motores ou explosões. Havia a fé. Seu percurso criava caminhos de poeiras brancas por onde passava. Reparou por um acidente. Nunca olhava para trás. Até o dia em que olhou... E por algum motivo resolveu voltar. Voltou com tanta força que nem sabia mais se ia ou se vinha. Alguma hora ia chegar. Não sabia onde, não sabia porque, mas sabia. Tinha fé. A cada gota de fé que depositava, mais o barco andava. Acelerava com uma velocidade abissal. Rodeado pelo negro do espaço tudo parecia perdido. Mas não estava. Só esta perdido aquilo que um dia pertenceu a alguém. Ele nunca fora senhor do espaço. Nem poderia. O espaço não era algo a se possuir. O espaço era...espaço. E só. Mas ainda chegaria aquilo que ele iria conquistar. Vez por outra, o navio até ficava mais lento. O olhar esmaecia. A cabeça parecia pesar. Mas subsistia a fé. Tinha fé de que um dia a jornada iria acabar. A cada sopro corria mais um quadril

Queria ser poeta.

Queria ser um poeta. Queria com uma sacada única resumir o mundo em numa frase. Mas ao mesmo tempo, nesse resumo torná-lo gigante. Pois reflexivo. Seria como um espelho olhando para o outro. Uma reflexão eterna. Compreendida em um único instante. O pensado em linha reta. Correndo por caminhos menores que um quanta. Mais fortes que uma formiga. Mais poderoso que uma semente. Queria ser um poeta. Mas nasci para prosa. E até ela às vezes me falta. Deveria me resumir ao silêncio. Sou teimoso. Proseio mesmo assim.

Lembrança

Os ipês rosados davam um charme todo especial. O céu de uma azul vivo completava a tela. O som dos pássaros tinha um poder metafísico de transcender o tempo e espaço e o colocava novamente na casa do avô, criador de pássaros e sempre com uma boa conversa embalada pelo rangido do armador e do punho da rede. Sentiu-se bem. Encontrou a paz que buscava. Suspirou com o contentamento de quem enfim conseguiu esquecer o que tanto o atormentava. Aqueles dias de dor estavam chegando ao fim. A angustia que até então lhe apertava o peito... Alongou o suspiro no meio... Lembrou-se de tudo que viera esquecer... Começava tudo do zero...

Rua do desejo

Passou gel no cabelo. Colocou o sapato mais novo que tinha. Ainda não tivera tempo de comprar roupas novas então tascou aquela blusa preta de banda de rock mesmo. O sapato verde limão com um short azul de tactel e a blusa preta formavam uma combinação tão correta quanto terços e cocaínas. Era uma imagem meio tosca, mas enfim... era o que tinha pra hoje. Era o primeiro mês de Teobaldo fora da cadeia. Passara quase quinze dias andando a esmo, só pelo prazer de andar mesmo. Passava na casa do amigo que o abrigara, tomava um banho, descolava alguma coisa pra comer e ia pra rua de novo. Gostava do barulho do centro cheio e do vento que tinha lá na avenida central. Mas cada vez que voltava do centro vinha por um caminho diferente. Nunca entendeu o porquê, talvez nem existisse, fosse só mania mesmo, sempre que ia a algum lugar tentava voltar fazendo outro caminho. Talvez mania de perseguição do tempo da cadeia, ou mais uma das pequenas loucuras que o alimentava. Lembrava de que qu

Cheiro do amor

Com o dorso da mão limpou a lágrima teimosa que escorria solitária pela bochecha rosada. O cabelo preso em um coque prático no alto da cabeça a impedia de esconder a emoção. Já se passavam anos de convívio. Lado a lado viveram momentos marcantes. Ele estava presente na vida dela há tanto tempo que nem parecia não ter estado. Mas a rotina os desgastara. A vida a dois era boa, mas sempre fora adepta de demonstrações de afeto. Por gosto dela já foram balões suficientes para erguer uma família. Roseiras inteiras entregues em oblação aquele amor. Tantas frases escritas no vapor do chuveiro elétrico que dava pra montar um livro, e não seria um fininho como aqueles de autoajuda, chegaria quase à um George Martin. Sentia falta dessas provas. Há meses aguardava ansiosa o dia em que ele demonstraria seus sentimentos. Há semanas temia que fosse para um adeus amargo. Mas aquele cheiro... aquele som dizia tudo. O odor que entrou queimando os pelos do nariz acompanhado daquela estridênci

Notado

Era por volta de seis da manhã. O sol ainda preguiçoso acendia lentamente seus faróis. O corpo esguio contra o chão contorcido em ângulos esdrúxulos era sintomático de uma vida. De uma vida não. De uma morte. - Alô, dona Carmem de Carvalho? - Diga. - A senhora tem algum problema cardíaco? - Sim... é de alguma drogaria? Agora essa, nem amanheceu direito e eu recebendo trote... - Bem, dona Carmem, a senhora poderia vir ao Instituto Médico Legal? A nossa assistente social gostaria de conversar com a senhora. - Poderia... você pode adiantar... - Infelizmente só podemos falar quando a senhora chegar. - Ok... O ônibus enganchado na lentidão habitual do trânsito hoje conseguia bater todos os recordes. Não sabia se pelo aperto no peito que lhe fazia emergir em uma esfera espaço temporal distinta de tudo até então, mas nunca demorava mais do que uma hora pra fazer o percurso entre a casa e o centro da cidade e já estava presa ali há pelo menos hora e quarenta minutos. Quando o

O apadrinhamento

- Preencha mais esses dois formulários senhor Monteiro... ótimo, ótimo... Agora faça a decência de olhar bem para a tela... Pronto, lembre da emoção... Ah, lágrimas não?! Ok, ok, o que teremos hoje. Uma imagem austera e corajosa? O destemido desbravador? O amor fraternal? Ah, entendi... pois deixe-me mudar o fundo aqui no programa. Pronto, o senhor já está novamente em verdes pradarias, pode deixar sua mensagem... Era o décimo no mesmo dia. Desde que lei de apadrinhamento estatal foi criada muitos correram para o ministério do carinho. No início sempre iam para as missões de Marte, a esperança era voltar rico das minas de corbescônio, mas, mesmo com os custos das viagens arcadas pelas empresas os terráqueos viram que não compensava. Os martiáquios (como eram chamados todos os descendentes dos terráqueos a partir da sétima geração que haviam passado por mudanças morfológicas oriundas da diferença do ambiente, mesmo que controlado por computador para parecer com o da Terra) haviam de

A bolha

Carla perdeu o ônibus. Afonso ganhou um celular novo. Era seu aniversário. Jonas engoliu um pouco de água na piscina. Era seu primeiro dia de natação. A mãe se desesperou, ele só tem quatro anos. Kélvia terminou a redação sobre maioridade penal. Sentiu orgulho de si. Kin falou sim. Cho também. Estavam casados. Emerson despediu-se do pai. Uma lágrima escorreu em cada olho. Agora era o homem da casa. Teve medo. Neto assaltou uma mulher no sinal. Gastou o salário dela com crack. Nenhum deles sabe quem é o outro. Cada um deles se acha o centro do mundo. Todos estão na mesma bolha. Mas todos se veem acima dela. Cada um é. Cada um está.

Deveria...

A regulagem direita da braçadeira que suspende a sapata estava danificada pela trepidação claudiante da má constituição da via... O saldo apontava R$ 0,27... O celular com a tela rachada de ponta a ponta marcava onze e meia da manhã. Fluiu três litros de suor em uma caminhada de vinte e cinco minutos a pé. A casa, desarrumada de ponta a outra estava cheia de barro que a obra da frente teimava em jogar por cima do muro dele, mesmo após ter ido lá quatro vezes... Deveria ter oferecido um cafezinho aos funcionários da obra. Deveria ter levado uma Coca-Cola gelada pro mecânico, a quem já pagara mais de seiscentos reais entre mão de obra e peças. Deveria ter entregue o celular para o ladrão que passou de bicicleta ao invés de ter segurado o aparelho e no embate ter derrubado-o no chão.  . .. ... Deveria ter mandado todo mundo tomar no cu.   

Autoimagem

Olhou-se no espelho. Achou-se bela como sempre. Passou o batom vermelho na boca. Duas pinceladas rápidas. Movia-se com destreza. Um biquinho, dois beijinhos no papel para tirar o excesso. Um sorriso cheio de dentes e voilá. Estava pronta. No trabalho tinha a certeza que todos lhe olhavam. Era linda. Ele apareceu. Tirou uma piada e se foi. O outro passou e nem ligou. O terceiro até lhe elogiou. Sabia que era linda. Era óbvio. Todos podiam ver. Almoço chegou. - Cláudio, vem cá... - Que foi Sâmia? - Eu sou bonita? - Claro, claro. - Tem certeza? - Sim sim, você tem uma beleza... olhou para o além a procura da palavra correta... exótica... a palavra lhe escapou dos escrúpulos por um milionésimo de segundo. Não dava mais pra voltar. - Exótica? Como assim? Todos dizem que minha irmã é linda e eu sou a cara dela. - A cara da Karla?! É.... sim sim, claro. - Sério? - Sâmia... é... tá... é.... Meio embriagada pela chateação e pela contrariedade correu pro espelho do ban

A ofensa do erro

Em algum momento da criação tudo ficou decidido. Apontar o erro é sinônimo de ofensa. E das mais pesadas. Não importa se a ideia é ajudar. Ora, como ele ajuda o eu? Absurdo. O acerto se conjuga na primeira pessoa, normalmente do singular, as vezes, e só as vezes, no plural. Já o erro, esse é sempre praticado pela terceira pessoa. Eu não erro, no máximo, sou perseguido. Ou tudo é culpa de quem não tem o que fazer. O erro é do outro, está decidido! Não existem desculpas pra isso. Erro é erro, e não adianta tentar justificar, você errou, eles erraram. Eu? Eu estou certo, e inclusive estou lhe alertando. Eu, faço o que deve ser feito, e as vezes, preciso passar por cima de algumas regrinhas bestas que os outros inventaram só pra me atrapalhar. Ele errou, vocês erraram. Nós acertamos. Eu... sempre acerto.

À deriva

Sentia a brisa lenta do mar roçando a face. Absorto tentava pensar. A fome não deixava. Buscava concentrar-se em alguma musica que gostava tanto, mas não conseguia lembrar como ela começava. Nenhuma gaivota. Nenhuma alga marinha. A terra só podia estar distante. O quão distante ainda conseguiria ir? Perdera o leme e as velas a mais de sessenta milhas náuticas. Tivera um sonho. Assumira o risco. Possuía o controle.  Tudo parecia tão distante como uma outra vida. Estava à deriva. Perdido em alto mar. Sabia para onde queria ir. Mas não conseguia ver como chegar.

Idiota

Não passa de um idiota. Com seu sorriso largo e sempre aberto. É um idiota de marca maior. Dizem-lhe não, ele escuta um talvez. Mandam-lhe fazer. Ele faz... e ri de ter feito. Falam-lhe que é impossível... e ele acha graça. Para ele existem rótulos, mas eles são só rótulos... Que escondem... lá no fundo, pessoas. Machucam-lhe no agora. Na hora odeia, em cinco minutos esquece, em dez... sorri. O céu ainda lhe parece belo. O sol incrível. Prefere gozar. Escolheu sentir o prazer. Sabe o que é sofrer. Conhece cada palavra de exclusão. Poderia recitar cada uma das negativas... Mas prefere ser idiota. Prefere dizer sim. E sorrir.

Rima

Por mais que ela tente, Não se sente com a gente, No seu peito, com força ela sente, Como é estranho ser diferente, Pois mesmo frente ao sofrimento, Não consegue ser indiferente. Não pode não ouvir o lamento, Daquele pobre e sofrido rebento. Ergue-se com fogo no peito E lhe estende a mão de um outro jeito. É complicado não enxergar, Não ouvir e não ter solidariedade, Vendo tantos a cambalear, Pelas ruas frias da cidade.    

"Fascio"

Olhem para fora dessa sala senhores. O que todos encontraram é nada mais nada menos do que miséria.  Homens e mulheres estendendo as mãos ao vento esperando que alguém tenha um mínimo de pena e lhes jogue alguns trocados. O povo jogará as moedas como sinal de arrependimento pela riqueza que possuem diante da miséria daqueles que lhes suplicam. Sentir-se-ão culpados se não o fizerem.  Quem são eles para simplesmente falarem: "Não, não vos ajudaremos"? Os pobres miseráveis que nada tem não podem receber apenas carrancas.  Se elas tiverem que vir, que venham pelo menos acompanhadas de algumas moedas.   Afinal, somos todos iguais.  O professor soltou uma sonora risada. Ora... Por que sairia o homem de sua situação de miséria e abatimento se tudo que ele precisa lhe é provido pelos outros. E mais ainda. Se esses outros não podem se orgulhar de serem melhores do que eles. Afinal das contas, na falácia da democracia, somos todos iguais.  É o parasita