O mártir - final.

Era uma manhã de sábado.
As folhas das árvores caiam intensamente.
Era outono, o inverno já se anunciava com força.
Logo as ruas de Roma estariam um pouco menos habitadas pelos eternos mendigos que davam a cidade um som ininterrupto de moedas batendo contra canecas.
Por enquanto ainda resistiam.
Muitos nem sequer repararam no ser cambaleante que percorria as ruas que davam para o palácio imperial.
Tantos outros seguiam o mesmo caminho.
Era dia da justiça de Júpiter.
O imperador ouviria alguns reclamantes até se aborrecer e colocar algum magistrado para resolver os problemas mais simplórios como sempre fazia. Cada um que entrava no palácio levava algum presente para Maximiano César. Não que ele precisasse. Nada lhe faltava, era o senhor do mundo. Por isso mesmo receberia os presentes, não por precisar mas sim por merecer.
Setenta e duas pessoas foram admitidas pelos guardas dentro do cercado que separava a praça das escadarias onde o deus romano atenderia aos miseráveis que lhe imploravam por uma fagulha de sua atenção.

Sebastião sentiu as feridas mal curadas vazarem sangue.
As mais graves chagas haviam sido curadas quando seu corpo quase sem vida foi resgatado por Irene e por alguns outros cristãos que tiveram coragem de tirar seu corpo flechado da laranjeira do estadio Palatino. Foram meses até que conseguisse erguer-se novamente. Já faziam algumas semanas que voltara a pregar o Evangelho e a praticar a caridade. Sempre acompanhado de algum dos jovens da comunidade cristã. A cada dia uma cruz, uma forca, alguma pira funerária, alguma diversão no coliseu... todos os dias Sebastião via cristãos serem mortos.
Naquela manhã levantou-se mais cedo que o habitual, arrumou uma capa entre as roupas comuns e seguiu seu caminho a pé até o palácio do imperador. Aquela loucura tinha que acabar e sabia que Maximiano era um homem que acreditava em presságios. Ele deveria ser o presságio de César.

Um a um os pedidos era feitos... um a um os fiéis súditos saudavam ao seu deus, um a um ouviam a justiça de César... até o número trinta e cinco.
- Já basta... que os restantes se reportem a meu magistrado. Tenho um mundo inteiro para governar. Em minha clemência escuto o povo de Roma pois sois o mais abençoado entre todos os povos, contudo, ei de me retirar.
A multidão gritou com intensidade clamando pela permanência do imperador. Todos imploravam: "permaneces conosco deus dos deuses", "aguardai mais um instante senhor soberano", ...

- Maximiano (a voz mesmo baixa teve o poder de atravessar a multidão) fica aqui, o senhor Deus te ordena!
Virando-se com fúria o imperador fitava a multidão que automaticamente calou-se diante do olhar assassino do antigo general com pescoço de urso e mãos de leão. Quase como um sussurro disse:
- Quem ousa falar assim comigo?
Retirando por completo o capuz falou: - Eu, Sebastião, teu amado, aquele a quem você ordenou a morte, mas que volta aqui para provar que Deus é grande.
- Impossível... Sebastião morreu a flechadas no início do ano. Meus generais assim o asseguram. Por que deveria eu ouvir tamanha mentira... (virando-se para os guardas) Matem esse pedaço de estrume...(virou-se para ir embora)
- Espera! (desamarrou a túnica marrom que cobria seu corpo) Vede aqui Maximiano, a marca das flechas ainda estão no meu corpo. Este mesmo corpo que por tantas vezes elogiastes foi machado e transpassado pelas flechas assassinas de teus homens, mas Cristo me quis vivo.
Com os olhos parecendo perdidos por um milionésimo de segundo, o imperador responde: - Cristo? O carpinteiro? O que um deus da carpintaria ganharia mantendo de pé filho de uma prostituta como tu? Acaso ele gosta de pederastas traidores? Hahahahaha
- O senhor Deus me manteve vivo para vir aqui e lhe mostrar meu amado senhor que ele é soberano sobre tudo que há na terra e nos céus, que ainda é tempo de construir uma nova história onde Roma andará mais uma vez lado a lado de seu povo. Não vês Maximiano, o povo adora a Cristo... (umas vinte pessoas ao redor de Sebastião fizeram sinal positivo com a cabeça) cumprem os rituais de adoração a ti apenas por medo da morte e sem verdadeiramente crerem no coração que tu és deus. Queres tu ser o senhor de uma mentira? De um povo que sofre por não poder adorar com o coração? Ainda tens a chance de reerguer Roma... Não vês que a cada dia mais e mais somos enfraquecidos? Bárbaros tomam nossas terras... o que mais poderia acontecer a um império cuja cabeça e o coração olham para lugares distintos.
As passadas longas do imperador atravessaram as escadas bem antes que os guardas pudessem fazer alguma coisa. Em poucos instantes enchia a cara de Sebastião com um murro. Agarrou-o pelo pescoço e enfiou o dedo em uma das feridas de flecha em seu peito. O sangue jorrou com força. Fitando o cristão nos olhos disse: - Tu não sabes nada... O que posso eu aprender de ti se sou o senhor de todas as coisas? Eu ordenei a vossa morte... Eu não peço a mesma coisa duas vezes... mas vejamos se seu deus é tão poderoso assim. Esmurrou uma, duas, três quatro, nove vezes Sebastião. O cristão, cuspindo sangue pela boca, de quatro no chão fitou o imperador e em meio aos dentes quebrados disse: - Converte-te e serás salvo.
- Salvo eu?! Tu quem deves pedir por salvação! MORRA SEBASTIÃO, MORRA! Guardas matem esse verme a golpe de paus e depois joguem seu corpo putrefato na cloaca máxima! Que permaneça eternamente junto a aquilo que é: UM PEDAÇO DE ESTRUME!

Vinte e cinco soldados se revesaram junto a Sebastião. No final ele não tinha um único osso do corpo inteiro. Morreu com um sorriso nos lábios. Seu corpo esfacelado dava testemunho de Cristo. Sua alma entrava no céu. Era um mártir. O mártir de Cristo São Sebastião.
         

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