O mártir - parte III
O cheiro de sangue empesteava a sala toda.
As vestais corriam para todos os lados.
Os corpos languidos e suados dançando como
sombras ao redor dos fogos que alimentavam as piras incensórias que vertiam
fumaça odorizada por todo o espaço.
Nem elas conseguiam esconder o cheiro de
morte.
Em cada um dos quatro quantos da sala
tambores e flautas tocavam em honra dos deuses.
Em cada porta pretorianos firmes como o
mármore das paredes.
- Vede cada um de vós meus capitães. Esses
cem foram retirados dentre muitos. Esses cem ousaram dizer que sou um como
vós... ou como eles. Agora eles estão mortos e eu permaneço de pé. Sou como
eles?
Em uníssono os vinte generais que se
acumulavam junto do imperador no alto da sacada do trono repetiram: Não, tu és
deus, tu és Maxinimiano Jupeteriano César Augustus. Tu és o senhor da vida e da
morte. Tu és o nosso pai. Tu és.
Com as mãos na cintura gargalhou com
força. Seu pescoço grosso de general experimentado em muitas guerras coroava os
ombros largos. O queixo duro e forte era apenas um detalhe diante dos olhos
negros e cruéis do imperador. Bastou-lhe um gesto simples. Uma centena de
guardas com lanças e escudos cercaram os generais. No comando estava o jovem
Sebastião. Suas vestes pretas agora estavam coroadas com dragonas douradas
assim como aqueles que agora estavam cercados pelas lanças fiéis ao imperador.
- Vocês ousariam mentir para mim?
Um misto de negativa e protestos se fez
ouvir, nada entendível.
- Sebastião, leve-os para o pátio. Que o
povo veja a vergonha desses que ousam desobedecer ao seu imperador.
.
..
...
Uma multidão se acumulava aos pés da casa
imperial.
A distribuição diária de pães estava bem
no meio.
A fome, uma constante, cessou sem ter sido
alimentada.
A visão dos grandes generais da guarda
pretoriana escoltados por lanças alimentou a curiosidade dos homens e mulheres
que se apinhavam esfomeados a porta do imperador.
- Vede filhos de Roma. Esses são os mais
poderosos do mundo. Esses que agora estão sob a linha de minhas lanças subjugam
as nações. Fazem a terra tremer sob minhas ordens. Mas muitos dentre estes
esqueceram a verdade. E eu vos pergunto o que é a verdade?! A verdade é de que
não há abaixo dos céus ou sobre a terra ninguém, seja homem, animal ou deus que
possa rivalizar ao meu poder.
Uma centena de corpos desfalecidos foram
empilhados no centro do pátio.
A tensão tomava conta e todos quando de
dentro da casa imperial um homem saiu com uma cruz da altura de dois homens nas
mãos.
A tensão era quase palpável.
Fincou-a sobre a pilha de corpos.
De lá gritou.
- Ó glorioso César. Sou Claudius Gaudinus.
Fiel servo e adorador de vossa divindade. Em nome do povo de Roma entrego esses
corpos em oblação e expiação pelos nossos pecados. Estes que aqui estão ousaram
crer que o deus carpinteiro dos judeus era mais poderoso que vós.
Pessoas correram na multidão.
Os guardas não conseguiram pegar todos,
mas pelo menos uma dúzia foi presa.
- Esses que agora tens diante de ti também
cometeram este crime. O que devemos fazer com eles amado deus?
- Se ajoelhem, reconheçam seu erro, peçam
perdão, tragam suas lágrimas aos meus pés e me adorem, assim eu vos perdoarei.
Dois se arrastaram em direção ao imperador
e lhe suplicaram perdão.
Aos outros dez foi dirigida uma única
pergunta:
- Adorarás ao senhor teu imperador e a ele
prestará culto?
A cada negativa, persignação ou aclamação
ao tal Cristo, a garganta do pecador era silenciada com o metal da faca de um
pretoriano.
Aumentaram a pilha. Outros tantos se
assustaram, pareceram desconfortáveis mas mantiveram-se em silêncio.
Só então Sebastião reparou que o ultimo
dos prisioneiros era um jovem de cabelos cacheados que conhecia bem. Cleto, um
recém convertido que fora expulso de casa pelos pais e que ao ser batizado
passara a viver nas catacumbas da velha cidadela.
- Senhor essa chacina deve terminar. Exclamou
Sebastião antes que o metal encostasse-se à garganta de seu companheiro,.
- Por que interrompes a justiça de teu
imperador?
- Porque isso tudo não passa de loucura.
Esses homens pagam os impostos que vos são devidos, respeitam vossa autoridade
e vos amam. Apenas rezam para que o Deus encarnado, morto e ressuscitado os
ajude a suportar as agruras de todos os dias.
Ainda atônito Maximiano não conseguiu
responder.
Gritos de aprovação e de repúdio partiram
da multidão.
Uma gargalhada alta e sádica fez com que
todos se calassem.
Do alto da pilha de corpos coroada com a
cruz Claudius apontava sua faca para o jovem general pretoriano.
- Senhor Maximiano, era deste que vós
falava. Em meio a vossos homens a corrupção dos cristãos se instalou e este
homem é o culpado. Se não matas a ele, como matarás o teu povo humilde? Que
exemplo eles terão.
Erguendo Sebastião pelos ombros, Maximiano
fitou-lhe os olhos.
- Diga que tudo é mentira Sebastião. Sabes
que te amo. Diga pra todos que tu não és um deles.
- Não posso mentir para vós meu senhor.
Também sabes que te amo, e por isso mesmo devo ser sincero quanto ao que se
passa em meu coração.
Apertou os ombros do general com força, os
olhos do imperador encheram-se de um tom de vermelho, sussurrando disse - Ao
menos finja Sebastião. Tenho tantos planos para ti. Sempre te quis ao meu lado.
Ficai comigo... finja!
- Não posso.
Deu-lhe um soco no rosto fazendo com que o
general fosse lançado sobre as escadarias da casa imperial.
- Pois que morra!!! Verme abominável. Escoria
do mundo. Fruto de uma rameira de prostíbulos núbios. Amamentando por tetas
purulentas. Envergonhas a minha casa. Amaldiçoo o dia em que vos coloquei sob
minha proteção. Que os astros nunca repitam a conjuração de forças que se
fizeram na hora em que nossos olhares se encontraram. Que morras a morte dos
impuros, que padeças como os infiéis. Serás um exemplo para todos. Teu corpo
não queimará. Amarrem esse estrume a um pé de laranjeira para que os espinhos
lhe transpassem a carne e lhe rasguem o cú. Encham esse saco de fezes de
flechas para ver se a merda lhe escorre pelas veias ao invés de sangue!
- Queime os cristãos e martirizem esse
traidor.
A gargalhada de Claudius mais uma vez
preencheu os ouvidos e o fedor da carne queimada preencheu as narinas.
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