O cimento da paz
A madrugada foi extenuante.
O corpo completamente dolorido até sentia saudade
da dormência de a poucos dias atrás.
Mas agora que se livraram dos corpos até sobrava
espaço suficiente para conseguir esticar as pernas. Sem falar que os cadáveres
empilhados faziam com que a barreira aumentasse a altura do buraco e pudessem
até mesmo ter o luxo de parar de caminhar agachados ou rastejando.
Depois de duas horas catando os piolhos escutou o
grito de jubilo a sua direita!
RÁ!!! CONSEGUI.
Von Martius exibia o rato agarrado pelo rabo como
rico pescador expunha seus troféus.
Jörg também partilhou do jubilo de seu irmão de
trincheira.
Há mais de dez dias não recebiam nada das linhas
de abastecimento.
Pelo barulho das explosões sabiam que haviam ficado
em meio a uma linha de fogo cruzada e que as bombas inimigas conseguiam atravessar
sua linha de trincheira... O que era mais desesperador, afinal, se conseguem
acertar mais longe... porque não lhes acertariam também?!
Depois de limpa a carne de rato magra foi cortada
em vários pedacinhos semelhantes. Jörg que era cozinheiro costumava sentir nojo
dessa iguaria de campanha... mas com a fome que estava, sabia que carpaccio de
rato era um bom pedaço de proteína que não poderiam desperdiçar...
Um pouco mais pra esquerda Ulrich gemia baixinho
sentindo dores abdominais atrozes. O corpo se desfazia em liquido e mal cheiro.
O jovem loiro e entroncado que conhecera agora não passava de um pedaço nauseabundo
de um semi-vivo... Mas ninguém parecia se importar... Era apenas mais um que ia
embora levado pelo cólera, pela leptospirose, pelas infecções intestinais...
Jörg sabia que perderia mais um amigo, mas isso
era a guerra... deveria já estar acostumado, deveria já ter abandonado a
certeza de sobrevivência, deveria... deveria...
Mas não conseguia esquecer o calor, o tato, o
paladar... os cabelos castanhos lisos, escorriam em pequenos anéis e caiam
suaves sobre os ombros. Os olhos do azul mais profundo que conhecera na vida.
Lembravam-lhe o céu... apesar de há tanto tempo não saber mais como era o céu
por trás da nuvem de fumaça, poeira e morte, sempre que lembrava dela, lembrava
que lá... depois da guerra, havia vida.
Provou-a uma única vez. Sonhou um milhão...
A última carta que recebera dela a mais de um mês
era cheia de promessas. Viveriam juntos. Teriam uma casa, o pai dela ajudaria a
se estabelecerem. Ela queria um cachorro e um gato, ele já via o jardim e as
crianças. Por ele teriam três. Frigg, Balder e Bragg. Ela ajudaria nos
trabalhos do restaurante até que conseguissem pagar outra pessoa. Depois
cuidaria das crianças. Sabia que daria certo. O que sentiam era forte. Forte o
suficiente para suportar a dispensa meio vazia dos primeiros anos. As fraudas
sujas e os aborrecimentos da casa.
Provou-a uma única vez. Desejava-a todas as
vezes...
Olhou os riscos no papel que usavam de calendário
para não enlouquecer na trincheira.
Pelas contas deveria ser entre 10 e 12 de
novembro de 1918. Já fazia mais de um mês que estavam na trincheira. Mais ou
menos 12 que estavam cercados.
Cada nascer do sol anunciava a possibilidade da
chegada de reforços. De serem retirados de dentro da vala dos mortos. Cada por
do sol trazia o temor de que tivessem sido deixados ali pra morrer.
Lá na ponta viu uma fresta de luz atravessando as
nuvens cinzentas... mais um dia começava, e com ele, a esperança de que tudo
seria melhor.
O som dos bombardeiros cessou.
Trocou um sorriso com Marthius... por algum
motivo sentia que aquilo tudo estava perto de acabar. Logo a trincheira não
passaria de uma lembrança.
Sentiu a garganta queimar enquanto o pedaço de
rato descia. De repente seus pulmões pareceram não responder mais ao comando de
sobrevivência do próprio corpo. Olhou ao redor de si e viu o mundo amarelado.
O sangue injetado nos olhos, as veias saltadas no
pescoço e na cabeça anunciavam seis horas depois, quando o corpo foi
encontrado, logo após o armistício assinado na manhã daquele mesmo dia, Jörg
Schutz Koch morrera asfixiado. Tivera a sorte de encontrar seu amor na única
mulher que viu algo a mais naquele gigante desengonçado... tivera azar por ter
encontrado a morte na ultima hora da guerra.
A Europa mais uma vez iria tentar viver em paz...
mas para isso, cimentou o caminho com milhões de sonhos... E em um deles havia,
crianças, gatos, cachorros e um restaurante.
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