Papel de pão.

Continuava lá na mercearia do pai, cabelos avermelhados, parecendo ferrugem caindo em meio a anéis bem feitos sobre os ombros quase nus, cobertos apenas pelas finas alças do vestido de chita que usava sempre que estava em casa. E a mercearia era bem um pedaço da casa, o pai assim que chegara na cidade transformou uma antiga garagem em ganha pão.

- Katrina, Katrina?

A moça acordou do sonho que sonhava acordada, mais uma vez. Tinha se tornado mais frequente a cada ano que passava.

Atendia mais um jovem que queria algumas balas e um litro de leite. Dinheiro pra cá, produtos pra lá, mas ele resolveu ficar mais um pouco, puxar papo, nada demais.
Até que de dentro da casa, veio, feito rottweiler o velho Dimitri Kornikov, vinha vermelho por detrás dos bigodes grandes e pretos pintados que mantinha sempre brilhosos com cera.
De imediato o rapaz se despediu, mais um....

Katrina Ielena Kornikov, contava agora 17 anos, nascera e se criara nessa cidadizinha do interior do Brasil. O pai, mesmo há pouco mais de 20 anos morando por aqui era visto como uma figura estranha na cidade, viera da Rússia logo que essa se abrira para o mercado mundial. Antevendo uma crise, Dimitri correu para o Brasil, do qual só ouvira falar que era o paraíso com mulatas e sol escaldante. Na cabeça do russo tudo isso soava diferente, ouvia: pouca roupa.
Talvez por isso, remoeu-se inteiro quando o médico anunciou que era uma menina.
Logo ele, tão viril, tão machão, com tanto a ensinar pro seu cabritinho... como faria agora?

E foi essa dúvida que dia a dia embranqueceu o bigode do russo, que não podia aceitar mostrar fraqueza. Casaria Katrina com um russo, se possível quando a menina já tivesse seus vinte e muitos anos.

Isso matava Katrina, só conseguia alguns segundos de sossego na hora em que o velho ia tirar a sesta - sagrada das 12:30 até as 14:00 - e ela ficava responsável pela mercearia. Coincidentemente era essa a hora em que todos os garotos da rua resolviam comprar tudo o que as mães precisavam ou nem precisavam ainda.

Dimitri a fizera jurar, nunca teria nada com ninguém que ele não aprovasse, e ela era obediente, mesmo sentindo o peso de sua decisão e de seu respeito pelo velho. Adorava quando suas amigas a chamavam de Kátia, e nunca permitira que nenhum homem se aproximasse dela, apesar de ficar com a boca sedenta e os olhos sequiosos sempre que via a novela das oito em que aquele povo parecia não ter pai nem mãe.
Só havia um segredo que Katrina guardava de seu velho pai, um regalo guardado do único homem com quem trocou mais do que duas ou três palavras, trocou-as sem precisar ter falado nada.

Ele era alto, com uma pele morena e um pingo de suor insistente sempre escorrendo no lado direito da nuca. Pedira dois pães grandes, e no papel amassado de um deles desenhou um céu, todo estrelado com a caneta bic com que Katrina anotava os fiados. Aquele céu era uma promessa, ela sabia.

Vez por outra, no finzinho da noite, já toda pronta pra dormir pegava seu céu estrelado, ouvia cornetas e trombones e corria pela grama alta do jardim, ele chegava alto e suado, vestido com sua roupa branca encardida, todo abotoado, e sem lhe dizer nada, dizia que viera lhe buscar e fugiam juntos sob a luz das estrelas. Tudo isso só de olhar pro seu céu de estrelas feito no papel de pão.

Comentários

  1. fico puto e com uma inveja da porra de quem consegue tirar uma história legal de uma música (pagode russo)ou uma vida toda de um desenho no papel.

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  2. Tiiio *-* texto está muito bom, parabéns.
    aah, só pra lembrar que eu não tenho mais blog. agora estou no tumblr, se quiser olhar ...
    http://virnaoliveira.tumblr.com/

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