Os hinos de vitória

Antes de ler algumas dicas:
Ler em voz alta, pausadamente.
Coloque a música do link para acompanhar http://letras.terra.com.br/madredeus/152439/



A música, é só a música. Mais um vez ela, alta e forte. Cheia de confiança e poder.

Esta maldita música que tanto se repete.
Fazem dois dias que ela é entoada sem parar, os sinos da cidade já desistiram de tocar tentando rivalizar com os tambores e as vozes. Até nisto perdemos.

Nestes dois dias, não consegui dormir, apenas cochilos leves e assombrados.
Meus olhos estão vermelhos, de sono e de lágrimas.
Todos estão assim.
Todos os olhares encontram-se apontados para uma realidade invisível. Parece que todos ganharam o poder da clarividência quando esta é menos bem vinda. Ninguém queria poder ver diante de seus olhos o espectro do futuro que se avizinha.
Mas é inevitável.

Minha casa é um cemitério.
No início as crianças nos davam uma impressão de que tudo ficaria bem, corriam pelas calçadas com suas brincadeiras inocentes rompendo o silêncio sisudo e autoritário dos soldados, agora se amontoam debaixo das camas, tentando tapar os ouvir e parar de escutar estes hinos.
Mas é inevitável.
Eles ressoam um som alegre, o som de nossa morte.

Já fazem quarenta dias que nos cercaram.
Altivos, senhores de nós mesmos, recebemos a visão de uma centena de navios com desdém. Nossos muros altos e grossos persistiram por séculos, deram a gerações inteiras segurança e certeza de um amanhã. Hoje, não queremos que ele chegue.

Funebremente pego as roupas que me restam, empoeiradas e rasgadas peças que um dia foram gloriosas, que carregavam no peito o símbolo de minha família, não que isto fosse grande coisa. Nunca fomos muito, nunca tivemos em demasia. Mas era como carregar em meu peito a todos que antes de mim envergaram este desenho na batalha. Agora carrego-os no meu peito que pesa pela certeza de que nosso encontro está marcado. E a única coisa que quero é que esse dia demore.

Visto-me e parto, não tenho de quem me despedir. Todos já estão mortos, mesmo que seus corpos ainda caminhem.

Não posso mais aguardar, essa música me envolve, ela me dá a certeza de que a hora chegou. Então por que esperar?
A cidade sibila como um inferno, por todos os lados há fogo e calor, lágrimas tentam apagar inutilmente a brasa do medo.
Lá fora estão os senhores da guerra. Já cantam hinos de vitória.
Acima de nós o sol começa a brilhar. Mais um dia nasceu. Falta-nos menos um.

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