Nanoolhos - parte III

Sentiu as agulhas perfurando as terminações nervosas do corpo. Ao seu redor um liquido viscoso parecia recobrir a pele. Apenas sentia, não enxergava coisa alguma.

- Você sabe onde está Francisco? Uma voz suave, com um tom terno de mãe chegou a sua mente, não sabia nem se havia entrado pelos seus ouvidos, ela apenas apareceu na mente, tão doce, tão terna e tão repentina que parecia familiar, parecia sempre ter estado lá.
- Provavelmente em alguma delegacia de ordem e paz...
- Abra os olhos. A ordem era imperativa, sem nunca ter pretendido ser uma expressão de força, mas era tão natural obedecer aquela voz que ele abriu instintivamente os olhos.
Percebeu-se em um campo verde. O sol acima de si estava brilhante, mas não era quente, pelo contrário, o sol lhe dava o calor gostoso e necessário para que o vento não incomodasse. A frente uma grande árvore solitária e mais distante podia ver uma cadeia de montanhas. Sob seus pés o gramado ainda revolvido e rebaixado dava a entender que até pouco tempo atrás alguma forma de aerojato tinha estado ali.
- O que você vê?
- É tudo muito lindo. Como eu cheguei aqui?
- Apenas caminhe. (Ele obedeceu)
- Onde você acha que estamos?
- Em um campo aberto, provavelmente algum dos pastos de Nova Paulistânia na divisa com a Argentina. Mal terminou de falar Francisco pode sentir um movimento por meio de sua visão periférica. Cinco crianças passaram correndo ao lado dele, não pareciam notar que ele estava ali. Apenas corriam felizes. A primeira das crianças, um jovem alvo de cabelos em forma de cuia caiu. As outras crianças rapidamente acorreram, o levantaram e continuaram seu caminho. Brincavam de algo parecido com pega-pega ao redor da árvore.
- Francisco... você gosta do que vê?
- Claro que sim. Esse lugar me transmite pa... Um estrondo gigantesco preencheu todo o espaço. Os olhos inchados de medo conseguiram ver o último instante em que o raio atingiu a árvore. O mundo transformou-se em caos. Passado o medo inicial Francisco só conseguia pensar nas crianças. Desesperado jogou-se em direção a elas. O mundo agora era uma mistura de grama queimada, focos de fogo, fumaça e gritos de dor. Não acreditava no que estava vendo. Os corpos infantis, ou melhor, aquelas sombras semi-deformadas de pele queimada se retorciam em dor enquanto se arrastavam para longe do que sobrara da árvore e exalavam fumaça a cada micro-movimento. Francisco jogou-se na direção do corpo mais próximo, tomando-o em seus braços, virou o resto de rosto em sua direção, duas grandes bilas azuis olhavam desesperadas para ele. Francisco sentiu um misto de medo, desespero, impotência e por mais que não quisesse admitir, repugnância. A criatura disforme mexeu os lábios como se quisesse falar algo. Ele encostou-se o mais que pode perto dela e conseguiu ouvir - Você está queimando... Só então Francisco percebeu que seu braço também esfumaçava. Largou o corpo da criança, tentou apagar a chama com a mão que automaticamente também entrou em combustão. Em pouco tempo sentia seu corpo queimando.
- Você sente a dor corroendo seus ossos? Você sente sua carne sendo comida pela fogo? Cada pelo do seu corpo já serviu de alimento para as chamas. Seus órgãos estão virando água Francisco. Você não tem para onde ir, você não tem como sobreviver.
- Não.... NÃO!!! Isso é uma mentira, vocês estão tentando me enganar!!!
- Enganar? Você sabe que não Francisco. A dor é real, você sente o cheiro, você sente o calor. Você sabe que acabou.
Ele apenas se contorcia quando sentiu o fogo interromper. A pele rangeu sob a força da água gelada que caia sob seu corpo. Arfando de cansaço chorou de alívio. Quando a fumaça se desfez ele pode ver a mulher de pé a sua frente. Os cabelos claros e escorridos iam até a altura dos ombros. Vestia-se toda de branco. E sem que ela falasse nada ele sabia quem ela era.
A voz terna mas imperiosa falou:
- Você sabe porque sofre...
O caos é a origem da dor.
O remédio para a dor é a ordem.
A ordem é São Paulo.

Estendeu-lhe a mão...

Sentiu as agulhas saindo de sua coluna e de baixo de suas unhas. Desfaleceu.
Acordou... terá acordado ou não?! Não podia ver mais nada. O mundo escureceu.    

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