A cova aberta

A reforma seguia a passos lentos.
A merda da conjuntura econômica e política desafia a paciência e o bolso de qualquer um. Falou Carlos Mandreozzi para o casal de amigos banqueiros que concordavam com um movimento calanguesco de cabeça enquanto tragavam o vinho trivento malbec.
A noite regada a safras não tão velhas quanto exigia o paladar dos consumidores deixou uma dor de cabeça leve na cabeça de Carlos que nem viu a hora em que Regina chegou em casa. Quando levantou, o som das marteladas constantes e repetitivas parecia um mantra monocórdio que lhe estourava os tímpanos.
Depois do desjejum foi passear na praia e só voltou lá pro fim da tarde.
Os trabalhadores de braços cruzados tomavam um cafezinho...
Ousadia maldita de gente que não entende seu lugar.
Chamando-o em um canto afastado, Pádua fedendo a suor e cimento sussurrou:
- Seu Carlos, tem o negócio de uns osso aí... é... com essas coisas eu não trabalho não.
- Pádua, eu tenho um deck pra construir, não quero saber de conversa mole não.
- O senhor me desculpa, mas eu tenho medo disso aí. Acho melhor só deixar essa reforma pra la...Mas se o senhor quiser continuar a gente tem que avisar o pessoal da prefeitura e tals...

Depois de demitir todos os quatro operários, reclamar a plenos pulmões da merda do governo e desse monte de bolsa que faz todo mundo virar vagabundo e preguiçoso, Carlos achava que nada mais podia dar errado. Retomou a obra com outra equipe. Em menos de uma semana, quando voltava do tênis clube, foi surpreendido por um giroflex na porta da casa. Eram uns policiais que queriam averiguar as ossadas que os trabalhadores encontraram. Por dois meses a casa ficou em estado de sítio. O pessoal da faculdade foi chamado. Descobriram que lá era o cemitério dos negros novos que aparecia em documentações administrativas entre os anos de 1750 e 1830. Colocaram faixas amarelas por todo lado e não tinha mais o que os trabalhadores fazerem naquele lugar. Era um sítio arqueológico e tinha que ser preservado.

Era madrugada quando o trator chegou. Passou por cima de tudo, liquidou as mais de oitenta ossadas recuperadas pelos pesquisadores. Jogou terra nas valas abertas. Carlos queria de volta sua vida, queria de volta sua casa. Sabia que precisava tomar medidas extremas, mas não permitiria que aqueles mortos lhe atrapalhassem mais. Afinal, era a sua casa, era o seu direito, era o seu dinheiro. O que lá ele tinha a ver com o tal "legado histórico" ou com a tal "dívida do passado"... Dívida é coisa de pobre e taí uma coisa que Carlos odiava.    

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