Ernestinho

Dezembro de 1991, enquanto as televisões transmitiam aqueles brancos gordos nas portas do Kremlin anunciando o fim da União Soviética e a vizinhança era tomada pelo cheiro de álcool, Denys Ernesto Dzagoev arrumava as suas malas. Enfim ia realizar um sonho de infância e conhecer a África.
Ao longo dos anos sessenta, quando nasceu, vários países africanos experimentavam uma luta pela independência frente as potências coloniais europeias que ainda tentavam resistir ao avanço da democracia internacional. Sua mãe, camarada do politiburo de Leningrado contava todos os dias antes de dormir a história do incrível médico argentino que abandonara todas as riquezas para lutar pela justiça e paz mundial chamado Ernesto Che Guevara, inclusive, em homenagem ao guerreiro argentino, havia ganhado seu nome do meio.
Durante anos Denys alimentou o sonho de ir as terras por onde Guevara lutou para poder conhecer aqueles campos sempre verdes e pessoas de pele negra que sua mãe sempre falava.
Foram os seis meses mais incríveis da vida do ex-soviético, agora russo. Nunca fora um sinônimo e beleza, mas lá estava ele chamando a atenção de todas as pessoas no meio da rua.
Sorriu como nunca, abraçou como nunca, bebeu como se não houvesse amanhã, trepou como se sua vida dependesse disso.
E no fim de tanta alegria, ainda colheu mais uma, apaixonou-se.
Aneet Sheera, uma bela congolesa de sorriso impecável, pele firme e carnes rijas.
Ao final do primeiro mês já carregava um menino do russo dentro do ventre.
Viajaram de volta para a mãe Russia, as coisas lá prometiam melhoras.
Mal chegaram e o clima ártico provou-se cruel demais para a princesa africana.
Os meses que se seguiram foram de constante dor e aflição, de tal sorte que fizeram com que a Denys não pudesse mais tirar a neve dos cabelos, eles congelavam por dentro junto a idade e ao temor.
Os médicos foram claros, ou a mãe ou a criança... Sem que ele tivesse tempo de responder ela disse: - Salve Ernestinho.
E assim se fez.
A intensa dor que rasgou o duro peito vermelho russo fez com que ele não tivesse mais condições de manter o emprego, em pouco tempo só lhe sobravam algumas economias e Ernestinho.
Juntaram os trapos e foram viver em uma fazenda comprada em Gdov já quase na fronteira com a Estônia.
A vida reclusa do antigo revolucionário pareceria achar recanto perfeito na cidadezinha de pouco mais de cinco mil habitantes.
Mas eis que surge o maior de todos os problemas, aquele povoado nunca tinha visto uma pessoa de pele negra.
Por sorte a maioria da população que professava a fé ortodoxa fora morta durante os expurgos de Stálin, porque os poucos que restaram já dava trabalho demais acusando o jovem Ernestinho de demônio, de ter a pele queimada pelo pecado, de ser uma abominação.
Foram anos dolorosos de pouca interação com o resto da comunidade.
Até que veio a adolescência e Ernestinho colheu sua vingança.
Para cada homem que lhe acusava de abominação havia uma filha curiosa que queria saber mais sobre aquele homenzarrão negro em que ele se tornava.
Para cada vez que lhe chamaram de demônio ele fez uma mulher chamar por Deus na cama.
Eis que depois de quase uma década, ainda solteiro mesmo tendo "passado da idade", Ernestinho não se sentia mais tão isolado por ser negro.
Sem que se soubesse ao certo o motivo, a cidade passara por um surto de nascimentos de crianças com a pele morena e cabelos encrespados.
No sermão o padre ortodoxo falava sobre a marca do pecado que tocava a fronte dos bebês dentro do útero das mães. As mães, riam de canto de boca sabendo o que realmente lhes tinha tocado por dentro.

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